A produção cartográfica vai além da mera representação geográfica e revela fatores complexos que permeiam as teias de poder. Em “História do Brasil em 25 mapas”, as historiadoras Andréa Doré e Junia Ferreira exploram a importância e as nuances por trás da cartografia. O livro reúne artigos que analisam mapas desde 1502 até mapas contemporâneos de monitoramento do desmatamento na Amazônia.
A premissa fundamental das organizadoras é que os mapas não são neutros, e sua função vai além do aspecto geográfico. Expectativas, interesses, ideologias, crenças e intenções influenciam a produção cartográfica e precisam ser desvendados e contextualizados para um melhor entendimento. Um exemplo é o Planisfério de Cantino, de 1502, que retrata o Brasil como uma pequena porção de terra coberta por árvores e aves coloridas. Para Andréa Doré, essa representação, embora imprecisa, sugere as riquezas minerais que a terra poderia oferecer, refletindo as expectativas dos exploradores.
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No mapa “America”, de Jodocus Hondius, produzido em 1606, já é possível perceber os efeitos da expansão europeia na representação gráfica. Dados coletados por exploradores passam a ser incluídos, assim como uma iconografia mais próxima da realidade em termos de flora, fauna e habitantes. O mapa destaca a região chamada de “Brasília”, cortada pelos rios Amazonas e Paraguai, mostrando a dominação europeia com a presença de canoas indígenas e embarcações europeias. Essa representação revela como o interesse etnográfico dos europeus influenciou a cartografia.
O mapa “Brasilia” (1643), durante a dominação holandesa no Nordeste, apresenta um repertório de imagens atribuídas a Frans Post, que serviam a uma narrativa de soberania política. À medida que a região se aproxima da Holanda, os desenhos retratam uma área cada vez mais “civilizada”, com destaque para a produção de açúcar em Pernambuco, de grande interesse comercial.
Em muitos casos, os mapas são significativos não apenas pelo que representam, mas também pelo que omitem. Por exemplo, o “Mapa del río Ayembi (atual Tietê) y del Paraná” descreve a jornada do autor da cidade de São Paulo até a Ciudad Real del Guairá, no rio Paraná. Embora o percurso atravesse terras portuguesas e espanholas, não há indicação de fronteiras, reforçando a ideia de um espaço único, apesar da divisão estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas. Além disso, o mapa oculta a presença das populações indígenas, que foram essenciais na ocupação da região.
Outro exemplo analisado no livro é um mapa de demarcação de terras na região Sul, feito em 1846. Produzido sob a ideologia de um “Novo Mundo” em branco a ser preenchido, o mapa omite a ocupação dessas terras por indígenas e posseiros, visando atrair imigrantes.
O livro também aborda mapas com objetivos políticos mais evidentes, como o mapa elaborado por Josué de Castro para ilustrar seu livro “Geografia da fome” em 1946. Esse mapa foi o primeiro a dividir a região brasileira em diferentes áreas alimentares, evidenciando a desigualdade socioeconômica no país. Outro exemplo são os mapas de desmatamento da Amazônia, iniciados em 1979, que possibilitam um mapeamento quase em tempo real das queimadas e desmatamentos, revelando o papel desses documentos como instrumentos para implementação de políticas públicas.
A obra “História do Brasil em 25 mapas” convida os leitores a refletirem sobre a natureza não neutra dos mapas e sua influência na construção de narrativas históricas e sociais. Através da análise dessas representações cartográficas, as autoras revelam as ideologias, intenções e poderes subjacentes, desconstruindo a visão simplista de que os mapas são meras representações objetivas do território. Com isso, ampliam-se os horizontes de compreensão da história do Brasil e das dinâmicas sociais que moldaram o país ao longo dos séculos.
História do Brasil em 25 mapas
Andréa Doré e Junia Furtado (org.) Companhia das Letras. 438 págs.