A história da serpente marinha dos mapas náuticos

serpente marinha
Uma versão da carta dos monstros marinhos de Sebastian Münster (1544 em diante) composta de cópias das vinhetas encontradas na Carta Marina de Olaus Magnus, de cinco anos antes. No alto, à direita, a serpente marinha enrolada ao redor do barco. Fonte: State Library of New South Wales.

Edmilson Volpi*

A terrível Grande Serpente da Noruega, ou Sea Orm, é o mais famoso de muitos monstros marinhos influentes retratados e descritos pelo eclesiástico, cartógrafo e historiador do século 16, Olaus Magnus. Joseph Nigg, da Revista Public Domain, explora o legado icônico e literário da controversa serpente marinha, desde seu início, na imaginação medieval, até a criptozoologia moderna.

Em seu abrangente estudo, The Great Sea-Serpent: An Historical and Critical Treatise (1892), o zoólogo holandês Antoon Cornelius Oudemans lista mais de 300 referências ao notório monstro marinho em sua cronológica “Literatura sobre o assunto”. Os primeiros dez deles, 1555-1665, citam a serpente marinha de Olaus Magnus: edições da Historia de gentibus septentrionalibus (História dos Povos do Norte), de Olaus, e histórias naturais, de Conrad Gesner, Ulisse Aldrovandi, Edward Topsell e John Jonston. A lista estabelece o monstro serpentino de Olaus como a principal fonte ancestral da tradição das serpentes marinhas, desde o século XVI até os avistamentos generalizados de tais criaturas na época de Oudemans. É a base para ilustração e discussão da criatura nos estudos marinhos e na fantasia popular até o presente, 500 anos depois de Oalus a ter criado.

Embora Oudemans cite histórias naturais em que aparecem cópias ou variações da famosa xilogravura da serpente marinha de Olaus, de Gesner, sua lista não se refere à fonte icônica do monstro: a Carta Marina de 1539. Oudemans não tinha visto o mapa. Depois que saiu de circulação, na década de 1580, ele ficou perdido por três séculos, até que uma cópia foi descoberta na biblioteca estadual de Munique, em 1886, pouco antes da publicação de The Great Sea-Serpent. Uma segunda cópia apareceu em 1962 e, agora, está na Biblioteca da Universidade de Uppsala. O mapa de parede, medindo cerca de 1,5 m de largura por 1,2 m de altura, era o maior, mais preciso e mais detalhado mapa da Escandinávia – ou de qualquer região europeia – naquela época.

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Padre católico exilado de sua Suécia natal com seu irmão arcebispo de Uppsala, Johannes, depois de sua conversão ao luteranismo, Olaus começou a compilar o mapa nacionalista na Polônia, em 1527. Criado para mostrar ao resto da Europa a rica história, cultura e maravilhas naturais do Norte antes da Reforma, o mapa foi impresso em Veneza, 12 anos depois.

A serpente marinha (Sea Orm) original. Detalhe da ‘Carta Marina’ de Magnus de 1539, mostrando um monstro vermelho brilhante ao redor de um navio ao largo da costa da Noruega com um redemoinho girando para a direita. Imagem: Wikimedia Commons

Os mares do norte do mapa marinho e terrestre estão repletos de monstro marinhos fantásticos desenhados ou aprovados por Olaus. O mais dramático deles, na movimentada costa da Noruega, abaixo do temido Maelström, é a grande serpente, enrolando-se em torno do mastro de um navio e investindo com os dentes à mostra em um marinheiro no convés. Como as outras feras marinhas do mapa, a serpente não é apenas uma decoração cartográfica para preencher o espaço, como em “elefantes em meio as cidades”, de Jonathan Swift. O objetivo é representar um animal real, que os marinheiros e pescadores nórdicos descreveram vividamente a Olaus em suas viagens pela Escandinávia. A legenda latina que acompanha a imagem indica que o monstro tem 91,4 m de comprimento. De acordo com a legenda do mapa, por outro lado, é “Um verme de 60 metros de comprimento envolvendo-se em torno de um grande navio e destruindo-o”.

Uma variação da influente serpente marinha da Carta Marina aparece no mapa de monstros marinhos de Sebastian Münster, Monstra Marina & Terrestria (1544 em diante – imagem do topo da página). Mas a fama da figura icônica de Olaus se espalhou pela nascente biologia marinha com a xilogravura invertida de Conrad Gesner, no volume de 1559 de sua monumental Historiae Animalium.

Mas, Gesner, hoje considerado o Pai da Zoologia Moderna, se distanciou de todas as feras marinhas da Carta Marina que apresentou, negando que o próprio Olaus fosse o responsável pela exatidão de suas imagens e descrições. Edwar Topsell copiou a xilogravura de Gesner em sua History of Serpents, de 1608. A versão naturalista da serpente de Gesner, por Ulisse Aldrovandi, sem navio ou marinheiros, enfeitou as páginas do livro de peixes de John Jonston e foi reproduzida no século XVIII como “Serpens Marinus Mari Noruegico familiaris Aldr”.

A versão de Konrad Gesner da serpente marinha de Magnus, como apresentada em sua ‘Historiae Animalium’ de 1558. Domínio Público.

A tradição seminal do monstro da Carta Marina abre um capítulo na History of the Northern Peoples (1555) de Olaus, a primeira entrada na lista de obras sobre a serpente marinha de Oudeman. Olaus começou o volumoso comentário do mapa após a conclusão da Carta Marina. Quase todas as bestas marinhas retratadas no mapa estão documentadas no culminante Livro 21, sobre monstros marinhos, do sensacional History. Vinhetas baseadas na Carta Marina costumam acompanhar os textos. O relato de Olaus sobre a Grande Serpente da Noruega, no Capítulo 43, é frequentemente citado nas obras que Oudemans cita e em estudos posteriores. A seguinte passagem, muitas vezes modernizada por escritores posteriores, é da primeira tradução do History para o inglês: A Compendious History of the Goths, Swedes & Vandals and Other Northern Nations (1658).

Olaus continua a descrever outra serpente marinha, avistada perto da cidade chamada Moos, em 1522. Esta besta “se ergue bem acima das águas e se enrola como uma esfera”. Os escandinavos acreditam que seu aparecimento pressagiava o banimento do rei Christian II e a subsequente convulsão política nos países do Norte. O pescador holandês Adriaen Coenen, seguindo o History e fortemente influenciado por Gesner, ilustrou e descreveu ambas as serpentes marinhas em seu manuscrito particular, The Whale Book (1585), muito do qual só recentemente foi impresso em fac-símile. Scholias Olaus continua seu capítulo com a discussão de escritos clássicos e medievais sobre cobras terrestres e serpentes marinhas.

Duas vinhetas apresentadas no 'History of the Northern Peoples (1555) de Magnus. Acima: A serpente marinha. Abaixo:  um tipo de lagosta gigante.
Duas vinhetas apresentadas no ‘History of the Northern Peoples (1555) de Magnus. Acima: A serpente marinha. Abaixo: um tipo de lagosta gigante. Domínio Público

O relato de Olaus sobre o Sea Orm, amplamente aceito no início do século XVII, é contestado um século depois por Erich Pontoppidan, bispo de Bergen. Pontoppidan dedica o capítulo 8 do segundo volume (1753) de seu Natural History of Norway a relatos de monstros marinhos e outros animais estranhos das profundezas. Inicialmente cético em relação aos contos da serpente marinha, o bispo acabou se convencendo de sua existência por “evidências completas e suficientes de pescadores e marinheiros críveis e experientes, na Noruega, que podem testemunhar que eles os viram anualmente”. Embora ele respeitosamente cite o History de Olaus nas páginas anteriores de seus volumes, sua avaliação da credibilidade do livro quando se trata de monstro marinhos é uma questão diferente. Escrevendo durante o Iluminismo, Pontoppidan condescendente – e um tanto hipocritamente – acusa que, ao escrever sobre a serpente marinha, Olaus “mistura verdade e fábula, de acordo com as relações dos outros; mas isso era desculpável naquela era das trevas em que o autor escreveu“. Ele acrescenta, porém, que, “Apesar de tudo isso, nós, na era atual, mais iluminada, somos muito gratos a ele, por sua atividade, e observações criteriosas”. Ele então cita a descrição desacreditada de Olaus da Grande Serpente da Noruega.

Uma representação de uma serpente marinha baseada em um esboço de uma testemunha, como apresentado na 'Natural History of Norway' (1753) de Pontoppidan
Uma representação de uma serpente marinha baseada em um esboço de uma testemunha, como apresentado na ‘Natural History of Norway’ (1753) de Pontoppidan. Domínio Público

Pontoppidan também acreditava no Kraken (lula gigante), que ele considerava a maior criatura do oceano. Ele chama o relato “crédulo” de Olaus de uma imensa baleia confundida com uma ilha de “um romance notoriamente fabuloso e ridículo” – embora ele mesmo descreva os hábitos alimentares do Kraken em termos de baleia alegórica de bestiários medievais (Satanás), cujo hálito doce atrai pequenos peixes (pecadores) em sua boca.

A autoridade do próprio bispo de Bergen estava desaparecendo no momento em que Sir Walter Scott erroneamente o confunde com Olaus Magnus, cujo título nominal de arcebispo de Uppsala passou para ele após a morte de Johannes. Na Nota 6 do The Pirate (1821), Scott escreve: “… as histórias maravilhosas contadas por Pontoppidan, o arcebispo de Upsal, ainda encontram crentes no arquipélago do Norte. Isso é em vão, eles são cancelados nas edições posteriores da Gramática de Guthrie, um trabalho instrutivo que eles usaram para formar o capítulo muito mais atraente para jovens leitores.”

O que Scott está se referindo aqui é o capítulo norueguês de WIlliam Guthrie em A New Geographical, Historical and Commercial Grammar and Present State of the Several Kingdoms of the World (publicado em várias edições após a morte do autor, em 1770). Guthrie exalta os “animais maravilhosos que, segundo alguns relatos modernos, habitam os mares noruegueses”. Entre essas criaturas está a “serpente marinha, … uma das mais notáveis e talvez a mais bem atestada”.

O famoso encontro do Bispo Hans Egede, em 1734, com “uma grande e assustadora monstruosidade marinha” e outros avistamentos qualificam-se como “modernos”. O lendário monstro de Olaus do século XVI não o classifica. Ele não é mencionado. Scott conclui sua nota desmascarando a história de um marinheiro respeitado que ele conhecia: a besta avistada, de 30,4 m de comprimento, com ‘a juba selvagem e os olhos ardentes que os velhos escritores atribuem ao monstro”, era muito provavelmente um “bom tronco da Noruega” nas águas enevoadas.

Um dos “antigos escritores” em questão era certamente Olaus, cuja descrição da serpente marinha Scott havia incluído anteriormente em uma nota de rodapé citada de “A Sereia”, no terceiro volume de seu Minstrelsy of the Scottish Border, de 1803. Em edições posteriores de sua coleção, Scott acrescentou: “Uma espécie de serpente marinha imensa o suficiente para ter dado origem a essa tradição, foi jogada em terra em uma das ilhas Orkney, em 1808”.

Apesar da revisão de Walter Scott da lenda aceita, os avistamentos atlânticos de animais considerados como serpentes marinhas multiplicaram-se ao longo do século XIX, como a lista de Oudemans tão amplamente atesta. A tentativa científica mais notável de identificar animais marinhos reais com a serpente marinha foi a de Henry Lee, a agora clássica Sea Monsters Unmasked (1883), produzida em associação com a Exposição Internacional de Pesca em Londres. Naquela época, a veracidade de Pontoppidan havia diminuído ainda mais do que na época de Scott. Ao apresentar os historiadores escoceses da serpente marinha, Lee escreve: “Aqui, eu suponho, eu deveria me entregar ao habitual escárnio do Bispo Pontoppidan”. No entanto, ele considera o escárnio escolar do século XIX para o prelado como imerecido porque Pontoppidan registrou apenas relatórios recentes da criatura após séculos de relatos. Lee então cita a recontagem das duas serpentes norueguesas por Olaus. Ele reconhece que o History está “cheio de improbabilidades selvagens e superstições estranhas”, porque foi escrito em uma era medieval, mas ele o achou “muito divertido e interessante”, e o elogia por sua“maravilhosa visão dos hábitos e costumes das nações do norte em sua época”. Dada a sua abordagem zoológica, Lee conclui que a serpente de Olaus era na verdade baseada em contos de gigantescos calamares.

Esboços ilustrando a teoria de Lee sobre o que estava por trás do avistamento de muitas serpentes marinhas, apresentada em seu 'Sea Monsters Unmasked' (1883)
Esboços ilustrando a teoria de Lee sobre o que estava por trás do avistamento de muitas serpentes marinhas, apresentada em seu ‘Sea Monsters Unmasked’ (1883). Domínio Público

Escrevendo logo após a publicação de Sea Monsters Unmasked, Oudemans contesta a identificação de Lee da serpente marinha de Olaus. O autor holandês admite que a descrição de Olaus do monstro que devorava o gado na costa de Bergen foi fabulosa. E mesmo considerando suas escalas no fac-símile “mal desenhadas” do History, ele acredita que o artista pretendia retratar uma cobra grande de verdade. Oudemans termina seu exaustivo tomo alegando que a maioria das 187 “serpentes marinhas” relatadas eram pinípedes, enormes focas ou leões marinhos.

A identificação de Oudemans de animais marinhos confundidos com uma serpente marinha é apenas uma de uma extensa lista que inclui baleias, lulas, tubarões, botos, enguias e mariscos. À medida que as serpentes de Oudemans se afastam cada vez mais da investigação científica sobre criptozoologia em busca de animais “escondidos”, a tradição iniciada em grande parte pela serpente marinha de Olaus na Carta Marina continua até os nossos dias. Em uma única semana, em outubro de 2013, a descoberta de dois mariscos mortos na costa da Califórnia espalhou-se por toda a mídia global. Relatos saudavam os peixes de águas profundas raramente vistos como “serpentes marinhas”, suas espécies provavelmente responsáveis por avistamentos lendários ao longo da história. Artigos e blogueiros especulando sobre o que levou os animais de 4,2 a 5,4 metros de comprimento à costa citaram portentos folclóricos de terremotos e tsunamis. Crescendo até cerca de 7,6 metros, os peixes-reais gigantes com cristas vermelhas são os mais longos dos peixes ósseos.

Leia o artigo original aqui, e a tradução no Curiosidades Cartográficas.

Edmilson M. Volpi é engenheiro Cartógrafo e editor da página Curiosidades Cartográficas no Facebook Instagram

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