Edmilson Volpi*
Em uma reportagem para o History, Evan Andrews lembra que o título de “o viajante mais famoso da história” é dado, geralmente a Marco Polo, o veneziano que visitou a China no século XIII. Mas, se o quesito é a distância percorrida, é preciso fazer justiça ao estudioso muçulmano Ibn Battuta, que passou metade de sua vida vagando por grandes áreas do hemisfério oriental.
Pouco conhecido fora do mundo islâmico, Battuta viajou por mar, em caravana de camelos e a pé, aventurando-se por mais de 40 dos países que hoje conhecemos, muitas vezes se colocando em perigo extremo apenas para satisfazer seu desejo de viajar.
Quando finalmente voltou para casa, depois de 29 anos, Battuta registrou suas viagens em um gigantesco diário conhecido como Rihla (viagens). Embora os estudiosos modernos muitas vezes questionem a veracidade de seus escritos – ele pode nunca ter visitado a China, por exemplo, e muitos de seus relatos de terras estrangeiras parecem ter sido plagiados de obras de outros autores –, o Rihla é uma visão fascinante do mundo de um viajante do século 14.
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Nascido no Tanger, em Marrocos, Ibn Battuta cresceu em uma família de juízes islâmicos. Em 1325, aos 21 anos, trocou sua terra natal pelo Oriente Médio. Ele pretendia completar sua hajj – a peregrinação muçulmana à cidade sagrada de Meca – mas também desejava estudar a lei islâmica ao longo do caminho. “Parti sozinho”, lembrou ele mais tarde, “não tendo nenhum companheiro de viagem em cuja companhia eu pudesse encontrar ânimo, nem caravana de cujo grupo eu pudesse me juntar, mas influenciado por um impulso dominante dentro de mim e um desejo há muito acalentado em meu peito para visitar esses santuários ilustres”.
Battuta começou sua jornada montado sozinho em um burro, mas logo se juntou a uma caravana de peregrinos que seguia seu caminho para ao leste pelo Norte da África. A rota era acidentada, infestada de bandidos e o jovem viajante logo desenvolveu uma febre tão forte que foi forçado a amarrar-se à sela para evitar cair. Mesmo assim, ainda encontrou tempo durante uma parada para se casar com uma jovem – a primeira de cerca de dez esposas a quem acabaria se unindo e depois se divorciando, durante suas viagens.
No Egito, Battuta estudou a lei islâmica e visitou Alexandria e a metrópole do Cairo, que ele chamou de “incomparável em beleza e esplendor”. Ele então continuou para Meca, onde participou da hajj. Suas viagens poderiam ter terminado ali, mas, depois de completar sua peregrinação, decidiu continuar vagando pelo mundo muçulmano, ou “Dar al-Islam”. Battuta afirmava ser levado por um sonho em que um grande pássaro o levava nas asas e “fazia um longo vôo para o leste … e me deixou lá”. Um homem santo interpretou o sonho como significando que Battuta vagaria pela terra, e o jovem marroquino pretendia cumprir a profecia.
Os anos seguintes foram um turbilhão de viagens. Battuta juntou-se a uma caravana e visitou a Pérsia, o Iraque e, mais tarde, se aventurou ao norte, onde hoje é o Azerbaijão. Após uma estada em Meca, viajou pelo Iêmen e fez uma viagem marítima ao Chifre da África. De lá, visitou a cidade somali de Mogadíscio, antes de mergulhar abaixo da linha do equador e explorar as costas do Quênia e da Tanzânia.
Ao deixar a África, Battuta traçou um plano que o levaria à Índia, onde esperava garantir um lucrativo cargo como “qadi”, ou juiz islâmico. Seguiu uma rota sinuosa para o leste, cortando primeiro o Egito e a Síria, antes de navegar para a Turquia. Como sempre fazia em terras controladas por muçulmanos, ele confiava em seu status de estudioso islâmico para obter a hospitalidade dos habitantes locais. Em muitos pontos de suas viagens, foi banhado com roupas finas, cavalos e até concubinas e escravas.
Da Turquia, Battuta cruzou o Mar Negro e entrou no domínio de um Khan da Horda de Ouro, conhecido como Uzbeg. Foi recebido na corte de Uzbeg e, mais tarde, acompanhou uma das esposas do Khan a Constantinopla. Battuta ficou um mês na cidade bizantina visitando a Hagia Sophia, e ainda teve uma breve audiência com o imperador. Nunca tendo se aventurado em uma grande cidade não muçulmana, ele ficou surpreso com a coleção “quase inumerável” de igrejas cristãs dentro de suas muralhas.
Em seguida, Battuta viajou para o leste através da estepe eurasiana antes de entrar na Índia via Afeganistão e Hindu Kush. Chegando à cidade de Délhi, em 1334, conseguiu um emprego como juiz de Muhammad Tughluq, um poderoso sultão islâmico. Battuta passou vários anos no emprego confortável e até mesmo se casou e teve filhos, mas acabou ficando cauteloso com o sultão mercurial, que era conhecido por mutilar e matar seus inimigos, às vezes jogando-os para elefantes com espadas amarradas às suas presas. A chance de escapar finalmente se apresentou em 1341, quando o sultão escolheu Battuta como seu enviado à corte mongol da China. Ainda sedento de aventura, o marroquino partiu à frente de uma grande caravana repleta de presentes e escravos.
A viagem ao Oriente provaria ser o capítulo mais angustiante da odisseia de Battuta. Rebeldes hindus perseguiram seu grupo durante sua jornada para a costa indiana, e Battuta foi posteriormente sequestrado e roubado de tudo, menos de suas calças. Conseguiu chegar ao porto de Calicute, mas, na véspera de uma viagem oceânica, seus navios explodiram em uma tempestade e afundaram, matando muitos em seu grupo.
China: início da viagem de volta de Ibn Battuta
A série de desastres deixou Battuta perdido e desonrado. Ele estava relutante em retornar a Délhi e enfrentar o sultão. Decidiu, então, fazer uma viagem marítima ao sul, até o arquipélago das Maldivas, no Oceano Índico. Permaneceu nas ilhas paradisíacas durante o ano seguinte, empanturrando-se de cocos, tomando várias esposas e, mais uma vez, atuando como juiz islâmico. Poderia ter ficado nas Maldivas ainda mais, mas, após uma desavença com seus governantes, retomou sua jornada para a China. Depois de fazer uma escala no Sri Lanka, Battuta viajou em navios mercantes pelo sudeste da Ásia. Em 1345, quatro anos após deixar a Índia pela primeira vez, chegou ao movimentado porto chinês de Quanzhou.
Battuta descreveu a China Mongol como “o melhor e mais seguro país para o viajante” e elogiou sua beleza natural. Porém, também chamou seus habitantes de “pagãos” e “infiéis”. Angustiado com os costumes desconhecidos, o piedoso viajante ficou perto das comunidades muçulmanas do país e ofereceu apenas relatos vagos de metrópoles como Hangzhou, que ele chamou de “a maior cidade que já vi na face da terra”. Os historiadores ainda discutem até onde ele foi, mas ele afirmava ter vagado até Pequim e atravessado o famoso Grande Canal.
A China marcou o início do fim das viagens de Battuta. Tendo chegado ao limite do mundo conhecido, finalmente deu meia-volta e viajou para casa no Marrocos, chegando de volta a Tanger em 1349. Como sues pais já haviam morrido, Battuta só permaneceu por um curto período antes de fazer uma viagem à Espanha. Embarcou, então, em uma excursão de vários anos pelo Saara até o Império do Mali, onde visitou Timbuktu.
Battuta nunca manteve diários durante suas aventuras, mas quando voltou para o Marrocos, em 1354, o sultão do país ordenou que ele compilasse um diário de viagem. O viajante, então, passou o ano seguinte ditando sua história a um escritor chamado Ibn Juzayy. O resultado foi uma história oral intitulada Um presente para aqueles que contemplam as belezas das cidades e as maravilhas das viagens, mais conhecida como Rihla. Embora não seja particularmente popular em sua época, o livro agora se destaca como um dos relatos mais vívidos e abrangentes do mundo islâmico do século XIV.
Após a conclusão de Rihla, Ibn Battuta praticamente desapareceu do registro histórico. Acredita-se que tenha trabalhado como juiz no Marrocos e morrido por volta de 1368, mas pouco mais se sabe dele. Ao que tudo indica, depois de uma vida inteira na estrada, o grande andarilho finalmente se contentou em ficar em um único lugar.
Leia aqui o artigo original e a tradução no Curiosidades Cartográficas.
* Edmilson M. Volpi é engenheiro cartógrafo e editor da página Curiosidades Cartográficas no Facebook e Instagram