Artigo de Luiz Ugeda, Advogado e Geógrafo, investigador na Universidade do Minho (Portugal), Doutor em Geografia (UnB) e Pós-Doutor em Direito (UFMG). CEO da Geocracia e de Talden Farias, Advogado e Professor da UFPB e da UFPE, Doutor e Pós-Doutorando em Direito da Cidade pela UERJ e Doutor em Recursos Naturais pela UFCG
Utilizando ferramentas de jornalismo de dados e tecnologia de geolocalização, o jornalista Vinícius Valfré, do Estadão, descobriu 325 fazendas registradas ilegalmente entre 2014 e 2023. Os “grileiros” estariam usando táticas digitais para avançar ilegalmente sobre terras públicas na Amazônia por meio do preenchimento de formulários online do Cadastro Ambiental Rural (CAR) para obter benesses e financiamentos, aproveitando-se da lentidão do Poder Público. São evidentes os prejuízos ao erário, ao meio ambiente e às populações tradicionais.
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O Serviço Florestal Brasileiro já se manifestou, dizendo que está identificando e punindo os fraudadores do CAR. Mas precisamos ir além da apuração administrativa, cível e penal para refletir como aprimorar o controle sobre o instituto que permite autodeclararmos propriedades com base em geoinformação.
A grilagem é uma prática secular no Brasil. A novidade é poder executá-lo de forma online e usando mapas, impulsionado por uma legislação geográfica e cartográfica de 1967, que não viu a humanidade pisar na Lua, não conheceu os satélites, a internet, drones, big data ou inteligência artificial. Monta-se uma poligonal no mapa, um desenho que tenha um mínimo de aparência de licitude, diz-se que é seu e registra no CAR.
A autodeclaração não é um problema em si, autodeclaramos todos os anos nosso Imposto de Renda e funciona de forma adequada. O desafio é estabelecer meios eficazes de controle, como a Receita Federal o faz, para conferir e atestar tais dados. Tratamento análogo deve ser dado a autodeclaração geoinformativa, processo relativamente recente em que um indivíduo ou organização informa dados sobre sua propriedade ou localização geográfica para promoção do ordenamento do território, gestão dos recursos naturais, segurança jurídica em relação a propriedade ou posse e pagamento de tributos.
A autodeclaração geoinformativa pode ser utilizada em diversas áreas, como na gestão ambiental, no ordenamento territorial, no planejamento urbano, na mineração, na agricultura de precisão, entre outras. Para que seja confiável, é importante que os dados informados sejam verificados e validados por meio de ferramentas e técnicas específicas, como imagens de satélite, levantamentos topográficos, ortorretificação, entre outros.
E para serem verificados e validados, devem ser regulados. O mapa não é uma commodity, uma verdade absoluta, mas sim uma versão representativa do território. O CAR deve ser encarado como um serviço público, e não como um produto ou um fim em si mesmo. É o que dispõe o art. 21, XV e 22, XVIII de nossa Constituição, ao estabelecer que compete a União legislar sobre geografia e cartografia, matéria que urge ser regulamentada.
É difícil imaginar como o setor agro irá conseguir, p. ex., ter a almejada rastreabilidade de seus produtores para vender ao mercado europeu sem resolver a questão dos mapas nacionais. A Indonésia, país tropical mais populoso que o nosso, possuidor de vastas florestas, somente valorizou suas commodities ao estruturar o One Map Policy (Política Pública do Mapa Único, em tradução livre) após padronizar sua legislação setorial.
Precisamos refletir como a autodeclaração geoinformativa deverá se posicionar no Direito Ambiental e Agrário, e na sociedade em geral, cabendo lembrar o ótimo trabalho do Direito Digital para adaptar a autodeclaração informativa a Lei de Proteção de Dados. Não se deve admitir grilagens sob as tecnologias do século XXI. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo