Artur Brandão: “Estamos construindo uma INDE sem informações do Cadastro Territorial”

Artur Brandão, professor da UFBA (arquivo pessoal)

Celebrando os 20 anos da Lei do Georreferenciamento e o seu sucesso para o cadastro de imóveis rurais (Geo rural), o especialista em Cadastro Territorial, Topografia e Geodésia e professor associado de Topografia do Departamento de Engenharia de Transporte e Geodésia (DETG) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Artur Caldas Brandão, se diz preocupado com o fato de a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) estar sendo construída sem informações do Cadastro Territorial. “Como pode isso?”, questiona Brandão em entrevista ao Geocracia, sugerindo que o exemplo do Geo rural pode ser utilizado para conferir segurança jurídica ao sistema registral brasileiro: “A experiência exitosa do Geo rural pode inspirar e ser referência para o ainda não resolvido georreferenciamento de imóveis em áreas urbanas no Brasil”, diz Brandão, mestre em Ciências Geodésicas pela UFPR e doutor em Engenharia de Produção pela UFSC.

Estamos comemorando 20 anos de vários marcos: Estatuto das Cidades, morte de Milton Santos e queda das torres gêmeas para ficarmos em alguns exemplos. Por que os 20 anos da Lei do Georreferenciamento são importantes para o Brasil?

Um dos motivos é que a Lei 10.267/2001 vem colaborando para um enfrentamento do problema do ineficiente ordenamento territorial que sempre esteve presente na história brasileira. Nas últimas décadas, essa questão foi reconhecida como diretamente relacionada ao desenvolvimento sócio econômico. Certo é que esse é um movimento global, decorrente principalmente das resoluções de conferências internacionais da ONU, estabelecendo ações para preservação do meio ambiente, erradicação da pobreza, promoção do progresso social e bem-estar para todos, como pilares para o desenvolvimento sustentável. Mas foi somente a partir de 1990 que um outro pilar foi incluído – a governança de terras, base para um padrão de uso da terra de forma sustentável. E aí que entra, entre outras ações no Brasil, a importância da Lei 10.267/2001, a Lei do georreferenciamento de imóveis rurais, o “Geo rural”.

A Lei 10.267/2001 simplesmente transformou o olhar que a sociedade brasileira tem hoje sobre a importância de um ordenamento territorial eficiente no meio rural. Essa temática sempre foi defendida em alguns poucos ambientes acadêmicos e profissionais, mas sem ter uma ressonância em escala a nível nacional. Somente com o “Geo rural” essa questão passou a contar com uma ferramenta que se mostrou adequada e de proporções nacionais. O “Geo rural”, entre outros procedimentos igualmente necessários para implementar ações voltadas ao ordenamento territorial, possibilita o conhecimento preciso dos limites da ocupação territorial, com base em suas coordenadas georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro, com um nível de confiabilidade dado pelas respectivas precisões posicionais. Tecnicamente, uma solução muito eficiente.

Aproveitando a citação a Milton Santos e ao Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001), vamos pensar como eles dialogam com o georreferenciamento de imóveis. A obra de Milton Santos tem como um dos vetores a valorização do “territorial” na construção de uma Geografia Crítica, focando os conceitos de espaço geográfico, território usado e lugar, para compreender a totalidade socioespacial. Não se concebe essa construção sem conhecer como as pessoas ocupam o território e os limites dessa ocupação – e isso é função de um sistema de Cadastro Territorial com base no georreferenciamento.

Por outro lado, quanto ao Estatuto das Cidades, que trata de questões urbanas no Brasil e que não vou abordar aqui, não posso deixar de mencionar a falha ou omissão deste importante marco jurídico que não incluiu aspectos relacionados à cartografia urbana e ao Cadastro Territorial com base no georreferenciamento. Um grande prejuízo que vem limitando a efetividade do Estatuto das Cidades, pois não se faz Plano Diretor municipal sem informação cadastral; não existe planejamento territorial eficiente sem informação cadastral. Faltou georreferenciamento no Estatuto das Cidades.

Mas você comentou também sobre os 20 anos da queda das torres gêmeas e fiquei aqui pensando como relacionar esse fato com o ordenamento territorial, governança de terras, georreferenciamento… A queda das torres gêmeas e toda a história que culminou nos últimos acontecimentos de agora no Afeganistão são um bom exemplo e reforçam o argumento de que intervenções à força, sem convencimento social têm seu preço. Fazendo uma analogia, nos processos de ordenamento territorial, na governança de terras, no georreferenciamento – com as devidas proporções, é claro –, é importante conhecer experiências de outros países, mas temos que aprender a construir nossas próprias soluções para os nossos problemas.

E considero que a Lei 10.267/2001 e todo o processo do “Geo rural” foi sim um bom exemplo de uma solução brasileira de sucesso, construída a partir de um diálogo amplo com a sociedade. Não é perfeita, mas tem seu reconhecimento e mérito.

E não poderia deixar de evidenciar aqui o papel fundamental do Incra nesse processo todo, ao longo desse 20 anos, como a principal instituição protagonista da criação e consolidação do georreferenciamento de imóveis rurais no país.

Quais foram os principais avanços e impactos do georreferenciamento de imóveis rurais no Brasil?

Considero a Lei 10.267/2001 (e todo o processo decorrente do “Geo rural”) fundamental para o aperfeiçoamento do ordenamento territorial brasileiro; importante subsídio ao sistema de Registro Imobiliário para uma maior segurança jurídica da propriedade; também valioso instrumento nos processos de regularização fundiária e para a geração de ativos econômicos com base na terra; e ainda base de referência para uma justa tributação sobre o uso e ocupação da terra, bem como necessário para todo tipo de ação envolvendo a ocupação territorial. Enfim, o “Geo rural” possui grande impacto e efetiva contribuição para a eficiência das políticas públicas sobre o território.

Mas essa efetividade da Lei 10.267/2001 só foi possível a partir do estabelecimento de duas medidas, quando se trata de informações confiáveis sobre a ocupação territorial: a medição dos imóveis e a necessária conexão com o Registro de Imóveis. Apesar de serem medidas óbvias no contexto dos principais sistemas cadastrais em vários países, somente com a Lei do “Geo rural” isso se tornou uma realidade no Brasil, pelo menos quanto aos imóveis rurais.

A medição dos imóveis, como colocado na Lei 10.267/2001, foi de uma assertividade brilhante, não somente por estabelecer o georreferenciamento ao Sistema Geodésico Brasileiro dos pontos que definem os limites dos imóveis rurais, mas também por determinar uma incerteza (precisão) posicional desses pontos. Isso garante a confiabilidade ao georreferenciamento, sistema que é regulamentado por normativas do Incra.

A medição georreferenciada de um imóvel, desde que atendendo às normativas do Incra, vale para a vida toda! Não há necessidade de novas medições – uma grande economia para o proprietário. E por ter um adequado controle de qualidade da precisão posicional, são dados de alta confiabilidade para a segurança jurídica, para ações administrativas e multifinalitárias e para a implementação de políticas públicas envolvendo o território.

Reforçando, ao estabelecer o necessário intercâmbio de informações do imóvel georreferenciado, entre o Incra e os Cartórios de Registro de Imóveis, a Lei 10.267/2001 estabeleceu diretrizes mais confiáveis para o desejado “princípio da especialidade” do nosso sistema registral, garantindo assim uma maior segurança jurídica à propriedade e aos negócios imobiliários. Adicionalmente, ao reconhecer essa necessária conexão entre Cadastro e Registro, não tenho dúvidas que a Lei do “Geo rural” foi um dos “gatilhos” para as ações em curso e outras mais necessárias para ampliar o processo de integração das bases cadastrais, notadamente quanto aos aspectos ambiental e fundiário, importantes para o aperfeiçoamento do sistema.

O evento Geo+20: Seminário Nacional em comemoração aos 20 anos de promulgação da Lei 10.267/2001, consolida toda uma visão sobre o tema. Como o Sr. resumiria os temas abordados?

O Geo+20 teve de fato uma vasta programação e contou com dezenas de palestrantes e debatedores, com variados pontos de vista, abordando e discutindo um amplo leque de assuntos relacionados ao tema do georreferenciamento de imóveis rurais no Brasil. Mas longe de esgotar o assunto, como pode ser visto na programação.

O Geo+20, de início, faz um resgate histórico do processo de criação da Lei 10.267/2001, evidenciando as dificuldades, as desconfianças, e os desafios superados. Os debates abordarão também aspectos que foram fundamentais no processo de consolidação dos procedimentos de georreferenciamento de imóveis rurais no Brasil. Mas o evento teve também um olhar para o futuro, discutindo temas fundamentais para o avanço e aperfeiçoamento do sistema de “Geo rural” no país.

Entre os temas discutidos, destaco: os Impactos e avanços do “Geo rural” ao longo desses 20 anos, a questão do perfil acadêmico para a formação de profissionais qualificados para atuar no setor, os aspectos da atuação profissional e demandas do mercado do “Geo rural”, os desafios tecnológicos que ainda precisam ser superados e a necessária estruturação sistêmica para possibilitar uma gestão integrada do sistema de georreferenciamento de imóveis no contexto do sistema de Cadastro Territorial brasileiro.

É possível antecipar o que precisa ser feito para que o Brasil esteja atualizado perante as melhores práticas internacionais da governança de georreferenciamento?

De uma maneira geral, penso que nosso principal desafio será o de estabelecer no país uma estrutura de gestão eficiente, sistêmica, completa, integrada e de abrangência nacional para o sistema de Cadastro Territorial, integrando o rural e o urbano com base no georreferenciamento de parcelas territoriais. E o sucesso do “Geo rural” pode contribuir de forma decisiva para isso.

Mas uma proposta dessa natureza, com o estabelecimento de um ainda inexistente “Sistema Nacional de Cadastro Territorial” e sua estrutura operacional, precisa, necessariamente, passar por um amplo processo de discussão com especialistas e com a sociedade em geral. Não cabe aqui aprofundar essa discussão, fica para um outro momento, mas penso que o êxito de uma empreitada dessa natureza depende de ações integradas e articuladas com estruturas já existentes e com o inevitável estabelecimento de legislação específica. Importante incorporar as experiências internacionais de desenvolvimento de sistemas cadastrais, considerando iniciativas e estruturas existentes, aproveitando as expertises e capacidade tecnológica e gerencial já produzidas. Novamente, tenho que evidenciar a contribuição inestimável do “Geo rural”, principalmente com a expertise dos Comitês Nacional e Regionais de Certificação e Credenciamento do Incra, bem como de outros entes, a exemplo do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (Sinter), entre outros.

Por outro lado, outros aspectos mais pontuais precisam também de ações efetivas. Destaco aqui os desafios relacionados a possibilitar o “Geo rural” em massa nos imóveis pequenos da agricultura familiar com vulnerabilidade econômica predominante. Mas também a experiência exitosa que o “Geo rural” pode inspirar e ser referência para o ainda não resolvido georreferenciamento de imóveis em áreas urbanas no Brasil.

Por fim, aproveitando o teor da pergunta, já falamos aqui que o êxito de uma governança de terras passa necessariamente por um eficiente sistema de Cadastro Territorial com base no georreferenciamento. Mas, nesse aspecto, temos muito ainda a evoluir no Brasil. O “Geo rural” é um sucesso, mas precisa ser aperfeiçoado. Convivemos com situações singulares, a exemplo de estarmos construindo uma Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) sem informações do Cadastro Territorial – como pode isso? Não tenho conhecimento de causa na questão do Registro de Imóveis, mas penso que o “Geo rural” pode resgatar o regulamento do Registro Torrens, presente em nossa legislação, que não obstante o rito legal específico, pode ser um importante avanço para o nosso sistema registral, passando da atual segurança jurídica relativa para uma segurança jurídica absoluta. São questões a serem aprofundadas em outras oportunidades.

Enfim, não tenho dúvidas de que a Lei 10.267/2001 é um bom exemplo da capacidade brasileira de superar seus problemas. Considero o “Geo rural” uma verdadeira inovação metodológica. E é um caso de sucesso, reconhecido internacionalmente.

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