Um dos maiores especialistas brasileiros em titulação e preço de terras, modernização da agricultura e crédito rural, o professor livre docente de Economia na Unicamp Bastiaan Philip Reydon defende a regularização fundiária por meio de um bom cadastro especializado e georreferenciado como solução para se obter uma maior segurança jurídica da terra, melhor produtividade, mais investimentos, maior acesso a crédito, elevação da renda e diminuição da pobreza, entre outros benefícios.
Em entrevista ao Geocracia, Reydon, que tem origem neerlandesa, cita como exemplo o cadastro realizado nos Países Baixos, baseado em mapas nem tão precisos do séc. XIX, mas que abrange a totalidade do território, atendendo, portanto, as necessidades do país. “Com frequência, queremos ter o ótimo e, assim, nem fazemos o básico. Temos aproximadamente 20 cadastros rurais que não chegam a ser cadastros, pois não atingem a totalidade dos imóveis, nem estão mapeados, nem estão vinculados aos registros. Mas com uma precisão de 50 cm”, diz o acadêmico, mestre em Agronomia pela USP, doutor em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente pela Unicamp e pós-doutor pelas universidades de Wisconsin – Madison e de Twente, nos Países Baixos.
A Governança de terras é um tema amplo e ainda pouco disseminado na sociedade. Por que gerir terras pode ajudar o Brasil a prosperar?
No caso brasileiro, a governança de terras é “a capacidade de estabelecer e fazer cumprir de forma integrada, os usos, os direitos e os deveres da propriedade”. É um conceito não disseminado, fazendo com que cada órgão que lida com a problemática o faz de forma e com informações distintas e, às vezes, até contraditórias. São desde os órgãos públicos federais, como os ministérios da Economia, Meio Ambiente, Justiça, Agricultura, passando pelos estados com os governadores, institutos de Terra, corregedorias, secretarias de Agricultura, chegando às prefeituras e câmaras de vereadores. Isto sem citar os cartórios de registros de imóveis, que são os responsáveis pelo registro legal das propriedades e estão nas respectivas comarcas. Isto acarreta uma infinidade de problemas no campo e nas cidades, que vão desde os conflitos pela terra, passando pelos usos antieconômicos, antissociais e não sustentáveis ambientalmente, chegando à grande concentração de terras no país nas mãos de poucos. Tudo isso gera insegurança nos direitos à terra, desde os individuais, os de grupos específicos até os coletivos. No Brasil, há uma tradição de tratar a problemática da terra na base do caso a caso e, frequentemente, os casos são judicializados.
A adequada gestão da terra requer inicialmente seu conhecimento, que significa um bom cadastro espacializado da terra. A partir disso, em primeiro lugar, os direitos e obrigações associados à terra podem ser mais bem implementados e controlados, as políticas podem ser melhor planejadas e executadas. Na literatura, com base em casos concretos uma boa governança de terras normalmente gera: melhor produtividade da terra, maiores investimentos associados à terra (rural e urbana), maior acesso a crédito, elevação da renda, diminuição da pobreza, segurança jurídica da terra, transparência (para fins fiscais entre outros), melhor planejamento e controle do uso do solo, diminuição do desmatamento e da erosão.
Quais são os modelos internacionais que o Brasil pode se inspirar para gerir melhor suas terras?
Inicialmente, cabe enfatizar que todos os países em maior ou menor grau têm que investir constantemente na melhora dos seus Sistemas de Administração de Terras, pois falhas existem em todas as partes. Há os países com modelos de excelência, como os escandinavos, Países Baixos, Dubai, entre outros. Mas os melhores modelos para o Brasil são certamente a Alemanha, Espanha e Portugal. Há a certificação ISO 19152 – Land Administration Domain Mode, que indica o caminho a ser seguido para se construir um adequado sistema. Os órgãos colaterais, como Banco Mundial, BID e FAO, têm muita experiência em auxiliar países na construção ou melhoria de seus sistemas, e o Kadaster Internacional, que também tem feito isso em várias partes do mundo.
Atualmente a Concar (Comissão Nacional de Cartografia) está desativada. Temos diversas iniciativas para mapear o Brasil, todas com centralidade no georreferenciamento. CAR, Sinter, INDE, cartórios, Terra Legal. Por que ainda não conseguimos nos organizar?
Tenho a impressão de que decorre do mesmo problema apontado anteriormente, ou seja, uma miríade de órgãos com diferentes interesses, sem confiança mútua e sem uma coordenação. Essa é a principal causa desse enorme problema do país. Essa coordenação deve se dar numa construção em que todos os órgãos criem uma confiança mútua, repassem as informações cadastrais que interessam aos demais e ao todo e, com base nisso, se faça a integração das informações, formando um cadastro integrado. Assim se evita que haja disputa pela propriedade das informações. Mas, para que isso ocorra, há necessidade do governo federal, em órgão acima dos ministérios, assumir a coordenação com o apoio e o aval da Presidência da República.
Quais são as áreas governamentais que podem fortalecer a governança das terras, principalmente em relação à Amazônia Legal (Lei nº 13.465/17)?
Há a necessidade de a Presidência da República estar ativa compreendendo que quem não conhece não governa. Depois disso, há a necessidade de se construir o cadastro integrado com as informações disponíveis junto aos principais órgãos: Incra, Receita Federal, IRB (representando os cartórios), Ministério de Economia (SPU), Ministério da Justiça (Funai), Ministério do Meio Ambiente e governos estaduais. A partir disso, em sucessivas aproximações, identificar as áreas com mais terras sem informação, georreferenciando-as e destinando-as da mesma forma que o Terra Legal fez com as glebas federais. Isso tem que ser feito com todas as terras devolutas federais e estaduais. Além disso, há os pequenos posseiros e proprietários desobrigados a repassar seus georreferenciamentos para o SIGEF e que também terão que ser georreferenciados. A Lei 13.465/17 se baseia nos acertos do Terra Legal e permite um processo de regularização focado nos legítimos posseiros em suas diferentes formas. As demais leis que foram discutidos desde a 13.465 são apenas mecanismos para ampliar a base da regularização, o que certamente inclui os posseiros ilegítimos.
Os neerlandeses dizem que Deus criou o mundo, mas os neerlandeses criaram os Países Baixos. É uma mística muito voltada ao fato de terem se apropriado de território marítimo, abaixo do nível do mar, para criarem um dos países mais pujantes da Europa. O Brasil é territorialmente o maior país do mundo que não equacionou a gestão de terras. O que podemos aprender com os neerlandeses?
Por se situarem em um estuário de rios, os Países Baixos, na realidade, criaram seu país originariamente a partir do controle e desvio das águas dos rios e da drenagem de lagos. Nos últimos dois séculos, passaram a cercar partes dos mares internos transformando-os em terras férteis. Os Países Baixos, apesar de terem uma área equivalente a 1/8 do Estado de São Paulo, são o segundo maior exportador de produtos agropecuários do mundo. Isso se deve a uma elevada produtividade da terra, uma organização muito precisa e uma eficiência à toda prova, todos decorrentes de um excelente planejamento, principalmente do uso do solo. Para isso é decisivo ter um cadastro de imóveis e terras integrado ao registro, num só órgão estatal, mas autônomo financeiramente. Nesse cadastro georreferenciado também há a integração de muitas outras informações decisivas, como endereços das pessoas físicas, rendimentos, valores dos imóveis e do subsolo.
Talvez, o que há de mais importante a aprender com os assim chamados holandeses é que quase tudo é possível, mas requer muita conversa, confiança e acordos. Que sempre há uma boa solução com o menor custo que atenda nossas necessidades. Portanto, o ótimo é inimigo do bom. Até hoje, o cadastro dos Países Baixos se origina dos mapas feitos a partir de 1832, com a precisão que cabia na época, mas que abarca a totalidade da superfície e, portanto, atende as necessidades do país. Nós, com frequência, queremos ter o ótimo, e assim nem fazemos o básico. Por exemplo, temos aproximadamente 20 cadastros rurais que não chegam a ser cadastros, pois não atingem a totalidade dos imóveis, nem estão mapeados, nem estão vinculados aos registros. Mas têm uma precisão de 50 cm.