A comunidade estatística e geográfica brasileira vive uma semana de grande polêmica, depois que o ex-presidente do IBGE e hoje pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Roberto Olinto, classificou o Censo de 2022 de uma “tragédia absoluta”. Em entrevista à Folha de S. Paulo publicada na segunda-feira (23), ele criticou a contagem preliminar da população divulgada e recomendou uma revisão da pesquisa sem descartar a possibilidade de refazer tudo, o que significaria jogar no lixo R$ 2,3 bilhões do orçamento.
A Agência Geocracia ouviu técnicos e especialistas ligados ao IBGE a respeito da polêmica. Apurou que as críticas de Olinto ao Censo caíram como uma bomba na casa, mas elas não são novas. Em outubro, comentando à Geocracia a decisão de prorrogar a coleta até dezembro (transformando um período normal de dois meses de coleta censitária em cinco meses), ele já demonstrava receio pela qualidade dos dados: “Sem um esforço excepcional, os riscos são muito grandes”, afirmava.
Na entrevista à Folha, Olinto usou um tom mais contundente: “Eu sinto vergonha disso”, disparou, acrescentando que o Censo “foi feito cheio de erros e gerando desconfiança […]. Imputaram dados para quase 20% da população. Imputar dado é você dizer: eu não tenho dados para 20% da população e vou usar um processo que normalmente se usa para 2%”, afirma.
Na opinião do ex-presidente, os dados preliminares são “coisas absolutamente inexplicáveis. No Rio de Janeiro, os municípios da região metropolitana, todos caíram de população em relação a 2010. No Rio Grande do Sul, um número enorme de municípios judicializou, porque não sabe se o Censo está certo ou errado. Eu acho que está errado”.
Para complicar, horas antes da publicação da entrevista, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e determinou que a distribuição do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) deste ano tenha como patamar mínimo os coeficientes de distribuição utilizados no exercício de 2018. A decisão, que ainda será avaliada pelo pleno do STF, suspende norma do Tribunal de Contas da União (TCU) de dezembro último que determinava para fins de cálculo do FPM a utilização dos dados populacionais preliminares do Censo Demográfico de 2022, cuja coleta, quase sete meses depois, ainda não está concluída.
A repercussão das declarações de Olinto e da decisão do STF foi grande, com uma nota oficial do IBGE defendendo a qualidade dos dados coletados e com posicionamentos de outros ex-presidentes do Instituto. A começar por Eduardo Rios Neto, que comandou o Censo 2022 e deixou o cargo no início deste mês. Em carta à Folha, nesta quarta-feira (25), ele defendeu o trabalho do Censo e disse que visitou “pessoalmente a presidente do STF, ministra Rosa Weber, para entregar uma carta que explicava as razões para a não conclusão do Censo”.
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Para Luiz Ugeda, CEO da Agência Geocracia, a crise em relação aos dados do Censo é muito prejudicial a um país que precisa urgentemente de dados confiáveis: “O grande valor dos órgãos estatísticos, hoje, é o de combater fake data (dados falsos). O desafio do Brasil, neste momento em que o Censo 2022 é questionado, é que faremos a mudança demográfica mais importante de nossa história, decorrente do rápido envelhecimento da população, praticamente no escuro, podendo gerar consequências severas sobre o sistema previdenciário e as necessidades municipais”.
FPM, uma ‘questão nevrálgica’
Os técnicos ouvidos pela Geocracia preferem ficar no anonimato, admitem um certo corporativismo na reação a Olinto, mas reconhecem que houve problemas no Censo: baixo orçamento, pandemia, falta de publicidade para facilitar portas abertas aos técnicos do IBGE, eleições, dificuldades para manter recenseadores durante a pesquisa e, além disso, a morte do então diretor de Informática e presidente da Comissão Operacional do Censo Demográfico David Wu Tai, em 2019: “Ele tinha uma enorme experiência na realização de censos e sua partida por conta da covid deixou um grande vazio na gestão da pesquisa”.
Eles não concordam, no entanto, com o termo “tragédia” e muito menos com a proposta de revisão e descarte dos dados. Defendem que “a maioria dos municípios concluiu bem a coleta, faltando apenas algumas áreas em cidades grandes, e a qualidade dos dados está boa”. E mencionam a Comissão Consultiva do Censo, que acredita haver qualidade estatística nos dados coletados para se fazer os ajustes necessários.
Outras fontes ressaltam que essas críticas e polêmicas sempre surgem no anúncio dos resultados do Censo por conta do cálculo do FPM, que envolve a distribuição de bilhões de reais aos municípios. “Fundo de Participação dos Municípios sempre foi uma questão nevrálgica, porque pega no ponto-chave de distribuição de dinheiro. Ninguém quer aparecer no Censo com menos habitantes e perder recursos”, diz um dos técnicos ouvidos.
Ex-presidente do IBGE entre 1994 e 1999, Simon Schwartzman concorda. Em artigo nesta quinta em O Globo, ele diz que a decisão do Supremo é uma tradição no Brasil. “Já tive esse problema 20 anos atrás. Essas discussões são muito politizadas”, afirma, defendendo uma avaliação técnica da pesquisa pela Comissão Consultiva do Censo: “Sei que o Censo está demorando, que há dificuldade de pagamento, de contratação, mas há a comissão que, em geral, é formada pelos principais demógrafos do país. Ela faz uma avaliação técnica, para que se chegue a um consenso de até onde os dados vão e quais as estimativas que têm de ser feitas”.
Seis presidentes desde o último Censo
Na mesma reportagem de O Globo, que também ouviu Sérgio Besserman (presidente entre 1999 e 2003), Wasmália Bivar, presidente do IBGE entre 2011 e 2016, concorda que o Censo 2022 teve problemas, até por perdas geracionais e pouca consulta a técnicos alijados do processo decisório: “Foram fazendo do jeito que achavam que deviam fazer. Isso foi uma falha bastante significativa. Agora, uma operação deste tamanho não se joga fora, não existe. Mesmo que tenha problemas, existem maneiras para trabalhar com os dados. Na pior das hipóteses, teremos uma amostra enorme que vai trazer resultados para o Brasil”, afirmou.
Mas o que chama a atenção no caso do IBGE é, primeiro, a rotatividade do cargo de presidente do órgão. Desde 2010, quando se realizou o último Censo, o Instituto teve seis presidentes (Eduardo Nunes, 2003-11; Wasmália, 2011-16; Paulo Rabelo de Castro, 2016-17; Roberto Olinto, 2017-18; Suzana Guerra, 2019-21, e Eduardo Rios Neto, 2021-23), uma média de um a cada dois anos, e se prepara para empossar o sétimo, que deve ser nomeado em breve pela ministra Simone Tebet. E, segundo, a quantidade de ex-presidentes dispostos a opinar publicamente sobre os problemas e desafios da casa — um sinal, para alguns, do enfraquecimento cada vez maior do Instituto. “Há décadas, todo mundo interfere no IBGE, e essa questão da Geografia sempre foi problemática, com conflitos envolvendo outros órgãos”, afirma uma técnica aposentada do Instituto, chamando a atenção para o contínuo esvaziamento político da figura do presidente do órgão.
“Toda essa crise evidencia algo cada vez mais claro. É urgente que o IBGE recupere o status de autarquia perdido em 1967, tenha seu próprio orçamento e seja elevado ao status de agência de geoinformação, até para cumprir o que reza o artigo 21, inciso XV, da Constituição, que confere ao Estado a competência para organizar e manter, em âmbito nacional, os serviços oficiais de geografia, geologia e cartografia. Isso está por ser regulamentado há mais de 30 anos, as geotecnologias estão revolucionando o mundo e o Brasil está ficando para trás”, diz Luiz Ugeda, CEO da Agência Geocracia.