Rubens de Almeida nos conta sobre os avanços na cobertura jornalística com geoinformação.
Um jornalista especialista em geotecnologias possui conhecimento aprofundado e experiência na cobertura de notícias e histórias relacionadas à tecnologia geoespacial, ou com o uso delas. Essas tecnologias incluem GPS, mapas digitais, imagens de satélite e outras ferramentas que ajudam a compreender e estudar a Terra.
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Este tipo de jornalista tem a capacidade de compreender e transmitir de maneira clara e acessível as informações técnicas relacionadas à geotecnologia, o que é fundamental para educar e informar a sociedade sobre questões importantes, como mudanças climáticas, desastres naturais e a gestão de recursos naturais.
E o Rubens de Almeida, engenheiro civil e jornalista de 63 anos, dedica-se a incentivar a utilização intensiva de geotecnologias e a implantar soluções geográficas em empresas, instituições públicas e organizações sociais, visando ganhos de eficiência e produtividade.
Ele nos contou um pouco de sua experiência e em como estas tecnologias podem ser determinantes para trabalhos jornalísticos, principalmente os investigativos.
Conte-nos um pouco de sua história e trajetória profissional e como que a geoinformação se introduziu em seu trabalho?
Sou engenheiro civil formado em 1983 e obviamente tive o treinamento de usar coordenadas e fazer cálculos geográficos na disciplina de topografia, que é básica para localizar obras de engenharia sobre o território. Mas são poucos os engenheiros que incorporam esse conhecimento e os utilizam na vida prática. Eu mesmo, trabalhei como calculista de estruturas e nunca precisei dessas informações.
Mas, sempre fui um engenheiro diferente: logo que me formei fiquei inconformado com os poucos ou nenhum estímulo aos formandos para que compreendessem as questões sociais e mazelas administrativas do país – uma falha curricular grave para uma nação que precisa superar graves atrasos e deficiências em sua infraestrutura e tem o desafio de evoluir na escala civilizatória. Resolvi, então, fazer algo para complementar minha formação e acabei entrando no curso de comunicação, com especialidade em jornalismo. O curioso é que essas escolhas pautaram toda a minha carreira profissional, embora na época eu não tivesse ideia do que viria acontecer na minha vida.
Com dupla formação universitária tão incomum, acabei dedicando grande parte da minha atenção profissional à divulgação de informações técnicas e de negócios da área de engenharia, infraestrutura, administração pública e urbanismo. Trabalhei em revistas técnicas especializadas e ao final desse ciclo, que durou quase 35 anos, passei a estudar e a me dedicar aos novos formatos de comunicação que então surgiam, após o fenômeno da Internet. Foi quando junto com parceiros da Gisbi – um think tank de estudos e negócios em geotecnologias – criamos uma interface web para mostrar dados sobre mapas digitais, que estavam começando a ficar mais acessíveis, no início do século XXI.
O que significa fazer jornalismo com geoinformação e por que isso é importante?
Essa pergunta é muito interessante porque só agora, vinte anos depois dessa iniciativa de colocar dados sobre mapas digitais, a geoinformação torna-se um instrumento fundamental – e talvez imprescindível – para exercer um bom jornalismo. Prova disso são as telas que são apresentadas nos telejornais ou ilustrações nos veículos impressos, seja para mostrar a previsão do tempo, locais sujeitos a chuvas intensas, a localização de uma guerra, um acidente, uma manifestação de grupos sociais ou uma tragédia humanitária, como a que estamos assistindo neste momento na Amazônia, no caso dos Yanomamis.
Mesmo assim, o uso ainda é tímido e, em vários casos, equivocado. Por exemplo, quando o apresentador de um telejornal cita uma cidade ou apresenta imagens de um hospital destruído por um míssil na guerra da Ucrânia, nem sempre os diretores de imagem se preocupam e vincular as imagens mostradas com uma localização correta daquela ação no mapa. Às vezes a gente fica perdido, porque as imagens dos vários episódios são misturadas apenas como estética da notícia e após alguns dias parece que tudo estaria acontecendo em apenas uma localidade, quando certamente deveriam ser vários “pontos” no mapa. A visualização sincronizada da notícia e das imagens daria uma noção muito melhor das consequências nefastas dos ataques militares em curso e uma dimensão correta dos conflitos e ataques.
Quando a notícia trata de uma aldeia no meio da floresta, por exemplo, se não colocar no mapa a sua localização, não é possível ter ao menos uma ideia de como se chega no local. Sem mapas, qual a distância da cidade mais próxima? Quais são as dificuldades logísticas para um atendimento médico imediato? Qual o melhor meio de transporte? Mesmo no caso de uma manifestação urbana, em uma metrópole, como avaliar as consequências para o trânsito ou a segurança dos cidadãos, se não houver um suporte que mapeie os movimentos e bloqueios? Fica difícil compreender a dimensão do movimento; sem informações de localização precisas, outros problemas que poderão ser ocasionados, como o bloqueio de acesso a um hospital de emergência para uma ambulância.
Como um jornalista pode empregar geoinformação para produzir notícias em um mundo disruptivo?
Há mais ou menos uma década, tive a oportunidade de trabalhar em um grande portal de informações da Internet brasileira, de grande audiência. Eu me lembro que quando cheguei lá, chamei os colegas da redação para propor a introdução da geoinformação para acompanhar as matérias jornalísticas produzidas. Também chamei a turma da tecnologia, para desafiá-los a aproximarem as geotecnologias dos jornalistas. Foi uma grande frustração, porque nenhum dos dois grupos de profissionais sequer entendeu o que estávamos propondo. Não havia percepção da necessidade. Era uma pregação no deserto.
Hoje parece óbvio que os mapas e as informações geolocalizadas podem apoiar os jornalistas a contarem as suas histórias e ajudar os leitores a terem melhor compreensão dos fatos e ocorrências. Houve, sem dúvida, um aprendizado social para o uso de mapas graças à disseminação de aplicativos como o Uber, Ifood, Waze e outros, que tornaram a informação de posicionamento e aproximação sobre mapas no celular uma parte importante da avaliação de qualidade dos serviços prestados.
Mas, em geral, há muito o que fazer para consolidar a introdução do uso da geoinformação no mundo dos negócios e da imprensa menos moderninha. Os pequenos e até mesmo grandes empresários ainda subestimam o impacto que o uso de suas próprias informações sobre plataformas geográficas teria sobre os seus negócios. Quem já experimentou, sabe que a iniciativa abre outras perspectivas de análise do desempenho da empresa. Esse aprendizado faz parte das habilidades exigidas das empresas que querem se tornar “data-driven”, ou seja, querem operar com as possibilidades do chamado bigdata. Essas empresas serão as que sobreviverão na concorrência porque sabem como avaliar seus potenciais de mercado, observam as ações da concorrência, acompanham rotas mais eficazes, verificam a oferta de fornecedores mais próximos e constroem serviços de apoio aos clientes muito mais eficazes, entre outras novas habilidades gerenciais proporcionadas pelo mapa.
Ou seja, ainda estamos no começo das descobertas de como a geoinformação vai apoiar todos os raciocínios produtivos, comerciais e jornalísticos. Mesmo para os que defendem que os negócios online vão prevalecer – e aí não importaria a localização de seus clientes, a geoinformação é uma necessidade primordial. Cada vez mais a sua localização será fundamental para realizar negócios, ainda que sejam em plataformas virtuais, pois há vínculos das pessoas com o território e conceitos como credibilidade, agilidade, acessos culturais, acadêmicos e outros, que determinam a capacidade de articulação entre os profissionais e definem a competitividade das localidades. É compreensível: se você estiver posicionado em Nova Iorque, com recursos de comunicação privilegiados, as pessoas acreditarão que você enxergará melhor o que acontece no mundo. Será?
Como a Inteligência Artificial, incluindo temas de metaverso e demais possibilidades tecnológicas, devem interferir no jornalismo nos próximos anos?
Considero o metaverso como uma interface e não uma substituição da realidade. Acompanho o desenvolvimento desses ambientes virtuais na Internet há mais de 20 anos, antes mesmo da já pré-histórica Second Life. Até agora essas propostas não se viabilizaram como um veículo preferencial das relações entre as pessoas, empresas e negócios. No lançamento das plataformas há um frisson, um interesse maior dos early adopters, mas creio que falta algo nessas propostas para alcançar uma estabilidade de usuários fiéis, como aconteceu, por exemplo, com as plataformas de reuniões online com uma velocidade incrível durante a pandemia. Acho que a evolução desses ambientes virtuais deve partir do que é de fato absorvido como ferramenta de trabalho, encontro e afeto entre pessoas reais. É ilusório achar que as pessoas vão dar preferência a viver em um ambiente virtual. Elas continuarão morando, comendo e usando a infraestrutura das cidades reais para permanecerem vivas e ativas, ainda que seja na frente de uma tela. Sem falar do desafio de superar a exclusão digital. A humanidade será dividida entre aqueles que têm acesso e o desprezo e abandono para os que terão mais dificuldades de evoluir no uso da tecnologia? Duvido.
Para o jornalismo, talvez haja oportunidades interessantes nesses modelos tecnológicos, mas ainda não vi nenhuma experiência diferenciada de utilização para valer no uso de ambientes virtuais. Seria muito interessante, por exemplo, interagir diretamente com os avatares dos profissionais que produzem a notícia para sugerir, tirar dúvidas ou aumentar a profundidade das informações. Talvez um deslocamento virtual ao local da notícia – olha aí a geografia novamente – possa acontecer e isso seria extraordinário. Mas, tenho a impressão, ainda estamos em um tempo em que a interatividade proposta em outras plataformas digitais, na chamada “segunda tela’ é muito fraca. Alguns programas jornalísticos ou de entretenimento propõem uma continuidade da “conversa” sobre determinado tema, mas atraem uma fração pouco significativa da audiência da comunicação de massa. Temos que aguardar evoluções mais atraentes dessas tecnologias.
O que deveria estar sendo dito aos estudantes de jornalismo sobre as novas tecnologias que já existem, não são estudadas da faculdade e farão falta quando se formarem?
Eu tenho um testemunho legal sobre isso. Vi e participei da mudança da impressão de revistas a partir da composição em Linotipos. Eu ajudei a provocar no meu ambiente de trabalho a evolução para a fotocomposição e depois para a edição digital instantânea. Nada disso fez parte do meu currículo na faculdade. Essas mudanças fizeram muita gente perder o emprego, da mesma forma que alguns anos mais tarde as redes sociais também provocaram um choque no ambiente profissional dos jornalistas. No meu início de carreira, por exemplo, era feio (e condenável do ponto de vista profissional) um repórter fazer uma cobertura jornalística e ele mesmo fazer uma foto da notícia. Havia profissionais fotógrafos especialistas para isso. Hoje o repórter que não usar o seu celular como instrumento de trabalho e fazer fotos e até vídeos para montar a sua história, viverá em outro mundo.
Daqui a pouco, essa novidade recente, de plataformas de inteligência artificial que escrevem textos – com estilos diversos e inclusive jornalísticos – a partir de uns simples questionamentos, certamente vai modificar, novamente, a nossa forma de produzir notícias e relatar fatos. Vai complicar, também, a identificação do que é fato ou fake, pois se os textos serão produzidos a partir do universo de referências na web, podem trazer muita sujeira e até mesmo mentiras deslavadas, escritas pelos gabinetes do ódio e dos provocadores de confusão social que certamente permanecerão existindo.
No entanto, paradoxalmente, estou animado.
Mesmo que o nosso papel venha a ser apenas o de ensinar a inteligência artificial a reconhecer versões da informação que mais se aproximam com a verdade, como uma espécie de curadoria necessária para separar o joio do trigo, haverá esse espaço para a intervenção humana, que não será abolida. A tarefa de contar histórias a partir de fatos reais pode se modificar, mas eu tenho a impressão que continuará a ser fundamental que as ocorrências no mundo sejam relatadas pela sensibilidade humana – jornalistas – presentes geograficamente no local das notícias, ou que pelo menos as estejam monitorando à distância, com o uso de recursos tecnológicos que ainda nem conhecemos. Os verdadeiros profissionais da informação, com suas falhas humanas, identificações ideológicas, preferências sociais e diferenças de abordagem, continuarão a produzir jornalismo, desde que se dediquem – sinceramente e profissionalmente – a retratar a realidade da maneira mais isenta possível.
Acredito, portanto, em um verdadeiro jornalismo do futuro, muito mais vinculado ao território e ao acompanhamento da realidade concreta, sempre com indicações de localização. Um jornalismo mais democrático, acessível e interessante graças às possibilidades de interação e complementação das mídias audiovisuais. Um jornalismo mais autêntico do que aquele que é muitas vezes realizado pelos grandes veículos, aprisionado nas redações (os jornalistas não saem mais às ruas!), que se contenta com a simples coleta de declarações dos envolvidos por whatsapp, muitas vezes sem o acompanhamento direto das ocorrências. Em breve, vamos superar também esse desfile opinativo e narcísico de vaidades com verniz de notícia que se espalha pela TV. Esse padrão não se sustenta, pois concentra seus recursos em altos salários de poucas “estrelas-comentaristas” que se tornam celebridades, mesmo que nem sempre possuam o conhecimento para opinar sobre os assuntos que analisam. A realidade continua para além desses comentários.
Neste momento, por exemplo, estamos desenvolvendo uma interface para monitorar sensores que acompanham o escorregamento de encostas onde habita uma população pobre. Já pensou essas informações disponíveis para a imprensa noticiar que um barranco está prestes a cair antes de acontecer a tragédia? Claro que o escândalo de mortes e o drama das famílias desabrigadas, infelizmente repetidos todos os anos é importante e atrai a curiosidade e audiência. Mas será que o trabalho jornalístico de acompanhar dados e informações relevantes para a população a ser atingida não seria mais interessante e uma evolução do ponto de vista dos processos de comunicação social? Sem falar que essas informações dariam uma dimensão real dos problemas nacionais para a sociedade e, talvez, uma nova visão sobre as prioridades que o estado e os governos precisam enfrentar.