José Roberto Fernandes Castilho*
Com vistas a traçar um panorama do tema, a proposta desse texto é apenas a de apresentar as seis formas jurídicas de organização do espaço urbano, que implicam fragmentação do solo admitida pela lei brasileira. Podem ser chamadas de “arranjos territoriais urbanos”, porque são modelos que a lei urbanística admite para constituição de novos espaços dentro da cidade, cada um com suas peculiaridades. Mediante a utilização deles é que a cidade se expande horizontalmente: mediante o processo de parcelamento do solo para fins urbanos, que irá constituir o lote composto por terreno e infraestrutura urbana que o conecta à cidade.
A intenção aqui não é a de discutir cada uma das figuras (o que já fizemos no livro Convite ao Direito Urbanístico, de 2021), mas apenas a de apresentá-las, apontando as características gerais de sua previsão na norma jurídica nacional: em suma, fazer uma relação dos modelos urbanísticos com seu conceito legal respectivo. Importante ressaltar que todas as formas dependem de regulamentação da lei local, uma vez que foram instituídas por leis nacionais que não afastam, antes requerem, a adaptação dos modelos às realidades locais. Como diz a Constituição Federal, é competência própria dos municípios promover o “adequado ordenamento” do solo urbano (art. 30/VIII).
Lei também:
- José Roberto Castilho: “Nossos imóveis precisam de uma carteira de identidade nacional”
- Jorge Francisconi: “Municípios precisam lidar com cartografia urbana”
- Egon Bockmann: “Temos de considerar a geoinformação como infraestrutura de rede de livre acesso”
1. Loteamento – art. 2/§º 1º da Lei 6766/79: “Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes”. Para melhorar a definição, deve-se dizer que é, ordinariamente, a subdivisão “voluntária” da gleba, sendo certo que esta subdivisão também pode ser “compulsória”, no caso de descumprimento da função social da propriedade (caso do art. 182/§ 4º/I da Constituição Federal).
O loteamento é a figura completa, também chamada de “urbanização primária”, porque constitui o lote (unidade edilícia), a agregação de lotes – que são as quadras cercadas por vias –, a infraestrutura urbana (água, esgoto, drenagem etc), abrindo ainda espaços para a infraestrutura comunitária – espaços estes que devem ser doados ao Poder Público local para que sejam implantadas escolas, creches, postos de saúde etc. A “urbanização primária” se completa com a “urbanização secundária”, que é a ocupação do lote pela edificação, objeto de licença do município.
2. Desmembramento – art.2º/§ 2º da Lei 6766/79: “Considera-se desmembramento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes”.
A diferença entre ambas, como se vê, está na existência ou não de vias na gleba que vai ser objeto do parcelamento. Perigosa (porque dependente de considerações fáticas), a figura do desmembramento pode servir para vários fins ilegais notadamente porque os agentes imobiliários têm lucro maior quando são dispensados de constituir vias que preexistem de uma forma ou de outra na gleba. De outro lado, desmembramento não se confunde com desdobro, embora as palavras se pareçam (pelo prefixo latino “des”, que indica separação, divisão, afastamento): desdobro incide sobre lote já constituído; desmembramento é da gleba bruta, embora cortada por vias de circulação.
3. Arruamento – operação sem previsão expressa na lei, mas forma lícita de urbanização como primeira etapa do loteamento: todo loteamento pressupõe arruamento, mas pode existir arruamento sem loteamento. Neste caso, o arruamento não constitui lotes, apenas quadras, preparando futura e completa urbanização. “Arruar” é um verbo do português castiço (século XVI) que significa dispor ou dividir em ruas, abrir ruas.
4. Loteamento de acesso controlado – art. 2º/§ 8º, incluído em 2017: “Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1o deste artigo [copiado acima], cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados”.
Esta figura era o antigo “loteamento fechado” que, agora, em 2017, foi institucionalizado como “loteamento de acesso controlado”, uma vez que o acesso às áreas públicas de uso comum do povo não pode ser impedido por nenhum instrumento jurídico. O texto legal é péssimo porque usa dois termos de sentido negativo: “vedar o impedimento”, o que, em sentido positivo, implica em permitir o acesso. Pretendendo-se bloquear o acesso público, o modelo a ser instalado deve ser o do condomínio.
5. Condomínio de lotes – art. 1.358-A do Código Civil, incluído em 2017: “Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição”.
Diferentemente do loteamento, as partes de propriedade comum dos condôminos não são públicas, como as escadas e os corredores de um condomínio edilício, por exemplo, que é a origem direta desta figura jurídica (art. 1358-A/§2º/II do CC). No condomínio, há partes da gleba de propriedade comum e partes de propriedade exclusiva – a unidade edilícia –, todas privadas. A MP 1085, do final do ano de 2021, permitiu aplicar ao condomínio de lotes o regime jurídico das incorporações imobiliárias, contrato que torna possível a venda antecipada dos lotes.
6. Condomínio de casas – art. 8º da Lei nº 4.561/64: “Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte: a) em relação às unidades autônomas que se constituírem em casas térreas ou assobradadas, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação e também aquela eventualmente reservada como de utilização exclusiva dessas casas, como jardim e quintal, bem assim a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá às unidades; b) em relação às unidades autônomas que constituírem edifícios de dois ou mais pavimentos, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação, aquela que eventualmente for reservada como de utilização exclusiva, correspondente às unidades do edifício, e ainda a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá a cada uma das unidades; c) serão discriminadas as partes do total do terreno que poderão ser utilizadas em comum pelos titulares de direito sobre os vários tipos de unidades autônomas; d) serão discriminadas as áreas que se constituírem em passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si”.
Como se vê facilmente, a diferença fundamental entre o condomínio de lotes ou casas e o loteamento ou desmembramento é que, nestes, há áreas públicas pertencentes ao Poder Público local, enquanto no condomínio – de modo semelhante ao condomínio edilício –, há áreas comuns aos condôminos (”utilizadas em comum”) que não são áreas públicas, ou seja, pertencentes ao Poder Público. Não são bens de uso comum do povo, como uma praça ou uma rua. Já a distinção entre condomínio de lotes – institucionalizado em 2017 – e o condomínio de casas – da velha lei de incorporação imobiliária de 1964 –, depende do tipo de unidade imobiliária constituída: se vazia (lote sem edificação) ou edificada.
O estudo detalhado de todas essas formas, mais simples (arruamento) ou mais complexas, de organização espacial urbana constitui objeto próprio do Direito Urbanístico. Na França, elas são chamadas, genericamente, de opérations d’aménagement urbain. O conceito central de aménagement, que pode ser traduzido como ordenação ou organização, significa, no caso, levar a cabo um projeto urbano (cf. art. L.300-1 do Código de Urbanismo), o que depende de autorização do Poder Público, com base no plano local de urbanismo – haja vista a necessidade de inserção harmônica do projeto no contexto da cidade. Daí que o termo seja traduzido também por “acomodação”.
Se acima foram apresentados os modelos jurídicos de crescimento horizontal da cidade, as formas legais de crescimento vertical (incorporação imobiliária geradora, normalmente, do condomínio edilício e o direito de laje) são temas totalmente diversos, submetidos a regras diferenciadas. Em qualquer caso, o crescimento vertical pressupõe a parcela já constituída, integrada ao espaço urbano e submetida ao plano de ordenação do solo urbano que permita a verticalização – o que se vincula à disponibilidade da infraestrutura urbana.
*Professor de Direito Urbanístico e de Direito Fundiário na FCT/Unesp.