No início dos anos 1980, em plena Guerra Fria, o então presidente americano Ronald Reagan lançou um ambicioso projeto que previa o lançamento de uma constelação de satélites munidos de canhões a laser capazes de contra-atacar mísseis balísticos transcontinentais ainda em voo, anulando a ameaça nuclear russa. Batizado de ‘Guerra nas Estrelas’, o plano recebeu inúmeras críticas, não só pelo seu alto custo, mas também pela defesa da premissa que o espaço deve ser preservado para fins pacíficos. Quase 40 anos depois, os satélites estão desempenhando um papel fundamental na guerra da Ucrânia, mas não exatamente da maneira como Reagan previu.
Vasculhando cada centímetro do Globo quase em tempo integral, equipamentos de órgãos governamentais e empresas privadas encontram-se em órbita da Terra enviando informações acessíveis por qualquer um com um smartphone. Imagens de bases militares, movimentação de tropas, armamentos, destruição de cidades e até indícios de crimes de guerra estão realizando um trabalho que começa a ameaçar um dos maiores clichês mundiais sobre conflitos armados: “Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”.
De fato, a verdade continua sendo massacrada todos os dias, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro. Mas, graças à avalanche de dados sobre o dia a dia dos combates proveniente de empresas e organizações produtoras de imagens de satélite de todas as partes do mundo, as ‘pernas’ das chamadas mentiras de guerra estão cada vez mais curtas.
Leia também:
- Conflito na Ucrânia consolida papel das contas OSINT
- Guerra da Ucrânia: quando mapas viram ‘armas’
- Bases russas seguem visíveis no Google
Um exemplo disso foi o massacre de Bucha, nos arredores de Kiev, em março. A infame versão russa de que os próprios ucranianos teriam forjado a cena do massacre, distribuindo os corpos das vítimas na rua após a saída das tropas invasoras, em 30 de março, não durou nem 24 horas. Imagens de satélite divulgadas pela Maxar Technologies mostravam que as dezenas de corpos numa das principais ruas da cidade já estavam no local e nas mesmas posições pelo menos 11 dias antes dos russos deixarem o local.
Guerra nas Estrelas por dados
As imagens de Bucha e de outros lugares estão servindo de base para que a Rússia seja acusada formalmente por crimes de guerra na Ucrânia. Conscientes do importante papel que estão desempenhando, as empresas do setor aeroespacial resolveram se unir em uma nova ‘Guerra nas Estrelas’ para buscar provas de crimes de guerra. No início de abril, em um encontro que reuniu os principais líderes da indústria, essas empresas foram estimuladas a realizar uma busca sem precedentes para encontrar indícios de crimes de guerra. “Prédios explodindo, buracos sendo cavados para sepulturas, esse tipo de coisa está sendo rastreada, registrada e documentada de uma maneira que achamos muito importante”, disse Dan Jablonsky, CEO da Maxar.
O jornal americano Politico, que cobriu o evento ressalta que, apesar desse mesmo arsenal tecnológico não ter sido utilizado com a mesma intensidade em recentes casos de violação e genocídio, como no massacre de muçulmanos uigures, na China, ou nos massacres do Sudão, a postura em relação ao conflito na Ucrânia “é vista como revolucionária”.
E essa postura ganhou novos contornos na semana passada, quando um grupo formado pelas empresas HawkEye 360, National Security Space Association (NSSA), ABL Space Systems, ARKA, BlackSky, Capella Space, ICEYE, Insight Partners, Leidos, LeoLabs, Maxar, Raytheon Intelligence & Space, Rebellion Defense, Relativity Space, Riverside Research, Rocket Lab, Velos e Viasat criaram uma iniciativa para financiar e realizar esforços de ajuda humanitária imediata ao povo da Ucrânia.
“Embora as empresas espaciais estejam desempenhando um papel vital por meio da coleta e análise de dados de natureza de defesa e inteligência, acreditamos que há um valor humanitário adicional que nossa comunidade espacial pode fornecer no apoio ao povo e ao governo da Ucrânia ”, disse o CEO da HawkEye 360, João Serafini.