Entrevista Ubajara Arcas Dias.
Desde a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 1992, há um reconhecimento global sobre a importância de abordagens como os créditos de carbono para mitigar os efeitos adversos das atividades humanas sobre o clima. E a implementação desses projetos, especialmente na Amazônia, requer uma compreensão detalhada das leis e regulamentos locais, além de uma verificação rigorosa das condições legais das propriedades envolvidas.
Ubajara Arcas Dias, sócio fundador do escritório Lino, Dias e Coelho Sociedade de Advogados, nos brinda com relevantes temas, como a recente permissão para a geração de créditos de carbono em florestas públicas e os desafios ainda existentes no estabelecimento de um mercado regulado de carbono no Brasil.
Também aborda a necessidade de auditorias para assegurar a conformidade com as normas ambientais, tributárias e de propriedade, a fim de evitar complicações legais que possam comprometer os projetos. Confira abaixo a entrevista completa, concedida antes da tragédia climática no Rio Grande do Sul ocorrida na semana passada.
Considerando a importância da Amazônia como um carbon sink significativo, quais desafios jurídicos são enfrentados na criação e implementação de negociações de crédito de carbono que efetivamente promovam a conservação e o uso sustentável desta região?
As mudanças climáticas são o assunto em voga e seus efeitos podem ser vistos a cada dia nos noticiários: chuvas em excesso em regiões onde não deveriam ser observadas, secas em regiões e em meses em que não deveriam ocorrer; ou meses cada vez mais quentes, batendo recordes históricos e provocando o aquecimento dos mares e branqueamento dos corais, que, embora cubram apenas 1% dos mares e oceanos, abrigam 25% da biodiversidade marinha.
Desde a Convenção Quadro das Nações Unidas em 1992, realizada no Rio de Janeiro, os países vêm reconhecendo esses efeitos causados pelo homem e têm buscado implementar medidas para mitigar as mudanças climáticas. Uma dessas ações são os projetos de crédito de carbono em vários setores com a metodologia e ferramentas adequadas para cada um deles, seja para a mitigação da emissão de gases do efeito estufa em indústrias diversas, seja na preservação de florestas e biomas nativos. E, neste último, a Amazônia desponta como um valioso ativo.
Mas, para implementação de um projeto de geração de crédito de carbono, é preciso estar atento às peculiaridades dos ativos rurais e da legislação no Brasil. Embora muito se tenha avançado, e podemos citar aqui a recente permissão de geração de crédito de carbono em florestas públicas sob concessão, regulamentações de alguns aspectos relacionados às atividades de preservação ainda estão em discussão no Congresso Nacional, como a criação de um mercado regulado de carbono e o estabelecimento de metas de emissão de gases do efeito estufa em um sistema cap and trade como existe na Europa.
Além disso, é importante verificar a regularidade das propriedades rurais no Brasil quanto aos aspectos imobiliário, ambiental, tributário e outros que possam se relacionar tanto à terra quanto aos seus proprietários, de forma a mitigar os riscos de perda do imóvel e da aplicação de multas pelas autoridades competentes. É preciso, portanto, fazer uma auditoria para verificar quem é o proprietário, o possuidor, se todos os impostos estão pagos, se a propriedade respeita a legislação ambiental e se possui todos os registros obrigatórios regulares. Não é raro no Brasil encontrar áreas sem título aquisitivo ou matrícula, sendo que seus “proprietários” possuem apenas o direito de posse sobre aquela terra.
Superada essa fase, existe a necessidade de negociação e elaboração de instrumentos jurídicos adequados e de contratos robustos e que sejam exequíveis de acordo com a legislação brasileira, contemplando relações comerciais com desenvolvedores de projetos de carbono, proprietários de imóveis rurais, investidores e compradores de créditos de carbono, por exemplo. Isso visa assegurar direitos e deveres das partes envolvidas e ao desenvolvimento de determinado projeto de preservação ou exploração sustentável dos biomas nativos durante todo o período previsto para o projeto.
Como a legislação pode ser desenvolvida para impulsionar a adoção de práticas de ESG por empresas que operam na Amazônia, garantindo que suas operações não apenas evitem danos ambientais, mas também promovam desenvolvimento social e governança corporativa na região?
Existem várias frentes que impulsionam empresas a implementarem práticas sociais e de governança, além da preservação do meio ambiente.
A primeira delas são os próprios mercados consumidores que buscam produtos cujas empresas efetivamente coloquem em prática medidas de sustentabilidade. O não atendimento dessas exigências pode dificultar o acesso de determinado produto a certos mercados. Como exemplo, podemos citar a exigência do selo FSC (Forest Stewardship Council) por empresas atuantes no mercado europeu para a entrada de madeira naquele continente. O FSC atesta a implementação de determinados padrões nas práticas florestais, tendo como princípios cumprimento de leis, direitos dos trabalhadores e povos indígenas, dentre outros. Ou ainda o chamado CBAM (Carbon Border Adjustment Mechanism), que será uma taxa imposta pela União Europeia para produtos com emissão de gases de efeito estufa embutidas em sua produção que entrarem naquele mercado.
No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por meio da Resolução 193, de 20.10.2023, estabeleceu a exigência, a partir de 2026, da divulgação por companhias abertas de relatório de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade nos termos dos padrões internacionais IFRS S1 e S2, elaborados pela International Sustainability Standards Board (ISSB). Essa medida visa dar transparência e permitir que investidores tenham acesso a riscos e oportunidades financeiras relativas à sustentabilidade e às ações responsáveis das empresas também com aspectos sociais. Adicionalmente, a Anbima criou os selos IS e ESG para fundos de investimentos que adotem medidas de sustentabilidade, incluindo a adoção ou investimento em medidas que promovam o desenvolvimento social e proteção e recuperação do meio ambiente.
Existem ainda, em nosso país, normas estabelecendo diversas políticas nacionais para desenvolvimento social, recuperação de vegetação e biomas nativos, dentre outras, que buscam colocar as bases para a criação de programas do governo para promover a inclusão, o incentivo a pequenos produtores, visando tornar possível a produção mais eficiente e a melhoria da situação das famílias mais fragilizadas, além de outros objetivos. Como exemplo, podemos citar a Lei 14.119, de 13.01.2021, que institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, prevendo a remuneração de quem conserva biomas nativos, e a Lei 11.326, de 24.07.2006, que estabelece as diretrizes para a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, prevendo, dentre outros instrumentos, crédito, pesquisa, assistência técnica, comercialização e habitação, e ainda a Lei 12.188, de 11.01.2010, que cria a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária.
Além disso, para determinadas atividades e projetos, o licenciamento ambiental pode conter a imposição de condicionantes ambientais e sociais para que seja obtida a licença para o exercício daquela atividade ou projeto, conforme lei 6.938, de 31.08.1981, e Resolução CONAMA 237, de 19.12.1997. Essas condicionantes têm por objetivo mitigar ou compensar impactos ambientais e sociais que o projeto poderá ter como efeito. Lembramos ainda que a Política Nacional do Meio Ambiente visa “assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana”.
Não obstante, a adoção de medidas sociais efetivas que beneficiem as populações envolvidas e no entorno de projetos de crédito de carbono é de grande importância para aumentar as chances de sua aprovação pela entidade competente de registro, podendo ainda contribuir para aumentar a atração e receptividade de determinado projeto e o valor dos créditos de carbono nele gerados.
Portanto, podemos observar normas e outras situações que incentivam a adoção de medidas sustentáveis também por empresas privadas, além de medidas públicas para a promoção social. Em geral, a maior atratividade para que empresas adotem determinadas práticas é o benefício econômico e incentivos que podem ser dados pelo governo.
Na qualidade de presidente do Comitê de Sustentabilidade da Belgalux, e com a Bélgica sendo uma das pioneiras em infraestrutura de dados espaciais, como esse conhecimento pode ser aplicado para aprimorar o monitoramento e a gestão de créditos de carbono na Amazônia?
Os projetos de geração de crédito de carbono exigem um trabalho minucioso para garantir a confiabilidade dos dados que serão apresentados à entidade registradora e ao mercado, tanto para atração de investimentos quanto para a comercialização dos créditos nele gerados.
Além de estudos iniciais de viabilidade do projeto, uma auditoria jurídica detalhada é fundamental para verificar a regularidade das propriedades rurais com relação às quais os projetos serão desenvolvidos, principalmente quanto aos aspectos imobiliário, ambiental e tributário, dentre outros. Atualmente já existem softwares que auxiliam nesse trabalho de auditoria.
Outra atividade que se faz necessária é a elaboração de um inventário florestal para verificar a quantidade de carbono existente em determinada área, que servirá de base para o projeto e o seu monitoramento frequente ao longo de seu período de duração. O objetivo é verificar a captura ou sequestro de carbono por aquele período, para emissão dos créditos respectivos. Tudo isso é submetido a auditorias e verificações por entidades independentes antes da emissão dos créditos. Isso exige um trabalho de campo que vem sendo auxiliado por novas tecnologias, dentre elas monitoramento e medição por satélite. Outras demandam apenas o trabalho inicial de instalação de equipamentos como câmeras e transmissores, com o posterior recebimento dos dados em tempo real para acompanhamento de crescimento de árvores em amostragem.
Além disso, em um projeto de desmatamento evitado, os chamados REDD+, é importante realmente tomar medidas de mitigação de riscos de queimadas, invasões e desmatamentos da área do projeto. Para isso, um monitoramento eficiente é imprescindível, pois a derrubada de árvores significa a perda de créditos que seriam emitidos.
Portanto, contar com tecnologia de monitoramento para identificar e poder tomar decisões rápidas para evitar queimadas, invasões e desmatamento ilegal na área do projeto é fundamental para credibilidade e continuidade do projeto de geração de crédito de carbono.
Quais são os desafios legais associados à regularização fundiária para a implementação de projetos de crédito de carbono na Amazônia? Como as leis podem ser adaptadas ou criadas para facilitar a clara atribuição e registro de direitos de terra que são essenciais para tais projetos?
Os principais problemas legais enfrentados na Amazônia quanto à regularização fundiária estão relacionados à comprovação da propriedade dos imóveis, pois muitos proprietários não possuem o documento adequado para comprovar a titularidade da terra. Muitas vezes, a transferência é feita sem o respectivo registro no cartório de imóveis competente e, não raras vezes, sequer é elaborado um documento particular formalizando a transferência da propriedade. Isso pode gerar incertezas quanto à titularidade da terra e inviabilizar os projetos. Outra situação é a demora de herdeiros e sucessores em tomar as medidas necessárias para abrir inventários e registrar a sucessão da propriedade de terras. Lembrando que, em algumas situações, os Estados ainda estão titulando algumas áreas e concedendo o título definitivo de propriedade às pessoas.
Outra situação problemática é a das invasões e grilagens de terra, desencadeando conflitos e incertezas, tendo em vista que estes expedientes ilegais podem se utilizar de documentos falsos. Notícias podem ser encontradas sobre escândalos relacionados à grilagem de terras e cartórios sob procedimento de correição, que é uma espécie de fiscalização interna pelo Poder Judiciário. Também não é incomum, em determinadas regiões, que incêndios tenham ocorrido em cartórios de registro de imóveis, os quais perderam uma parte ou mesmo todo seu acervo, sendo necessário um extenso e difícil trabalho de reconstituição.
Todo esse cenário torna ainda mais imprescindível a realização de auditorias, principalmente do aspecto imobiliário, de forma a assegurar toda a cadeia dominial desde o destacamento do poder público para o privado e o histórico daquele imóvel.
Além disso, é possível que sejam criadas unidades de conservação ou demarcadas terras para reservas indígenas, terras quilombolas ou para outra destinação a ser dada pelo poder público, mas ocorra uma demora em sua desapropriação ou estabelecimento de regras limitando seu uso. Esse lapso entre um momento e outro pode causar dúvidas e questionamentos.
Entretanto, existem políticas públicas para estimular a regularização fundiária. Dentre elas, podemos citar as políticas de reforma agrária, que visam também à regularização de áreas de assentamento para pequenos produtores rurais beneficiados, nos termos do Decreto 10.166, de 10.12.2019, bem como o trabalho do governo para titular terras em que se encontram comunidades quilombolas e tradicionais.
Importante ressaltar o papel do georreferenciamento na regularização fundiária. Para sua elaboração e certificação pelo INCRA, diversos documentos e a anuência de confrontantes, bem como a utilização de tecnologia para verificação dos limites da propriedade, são fundamentais, nos termos da lei 10.267, de 28.08.2001, e do decreto 4.449, de 30.10.2002. Concomitante a isso, uma desburocratização e uma maior celeridade e aparelhamento dos órgãos públicos trariam muitos benefícios a todos os projetos com base em propriedades rurais.
Considerando as atuais políticas ambientais e climáticas da União Europeia, quais são as perspectivas e desafios legais para a evolução dos mercados de crédito de carbono na região nos próximos anos? Como a legislação da UE pode ser adaptada para maximizar a eficácia e integridade desses mercados, garantindo que eles contribuam significativamente para os objetivos climáticos europeus?
A União Europeia tem aprovado normas cada vez mais rígidas sobre questões ambientais, visando ao combate e à mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Podemos citar o CBAM; as auditorias de sustentabilidade em empresas europeias e seus fornecedores; ou ainda o próprio limite imposto pelo mercado regulado de carbono às empresas do bloco para emissões de gases do efeito estufa em suas atividades e a obrigação de compensação para a parcela que não puderam reduzir de tais emissões.
No Brasil, apesar de ainda não termos um mercado regulado de carbono, muitas empresas já iniciaram a adoção e implementação de novas tecnologias, incluindo equipamentos e processos produtivos, objetivando a descarbonização de sua atividade e a compensação de parte de suas emissões, inclusive nos escopos 1 (emissões diretas, isto é, aquelas provenientes da própria atividade produtiva da empresa), 2 (emissões oriundas do uso de energia) e 3 (emissões sobre as quais a empresa não tem controle direto e que ocorrem na cadeia de valor da empresa, como emissões dos fornecedores) , de acordo com o Green House Gas Protocol.
Nosso país, principalmente a Amazônia, possui um potencial enorme do ponto de vista de combate às mudanças climáticas e ao mercado de créditos de carbono. Isso porque referido bioma compreende uma extensa área com floresta capturando e armazenando carbono, além de ter uma grande biodiversidade de flora e fauna.
Essa região tem sido alvo de investidores e empresas desenvolvedoras de projetos de geração de crédito de carbono, tanto baseados na manutenção da floresta, incluindo ou não o manejo florestal sustentável, e na restauração de áreas degradadas com espécies nativas ou ainda por meio da integração lavoura-pecuária-floresta.
No entanto, esse mercado tem vivido um período de desconfiança e uma crise de credibilidade. Para combater essa situação, certificadoras como a Verra revisaram suas metodologias, de forma a assegurar a governança e solidez de padrões e procedimentos em cada metodologia a ser aplicada. Em complemento, um trabalho fundamentado por parte de quem implementa os projetos, e um trabalho para desburocratizar os sistemas e solucionar conflitos fundiários certamente contribuirão para demonstrar a seriedade dos projetos desenvolvidos no Brasil e para fortalecer a confiança e atrair investidores e compradores para os créditos gerados com base na Amazônia.
A criação de um mercado regulado no Brasil é essencial para incentivar os investimentos e projetos de geração de crédito de carbono no país e dar segurança jurídica para investidores e compradores desses créditos. É importante também que haja previsão normativa da interoperabilidade entre os mercados regulado e voluntário, permitindo a utilização de créditos de carbono do mercado voluntário no mercado regulado, de forma a referendar os esforços de preservação e conservação anteriores à sua instituição e estimular a sua continuidade. Neste sentido, é fundamental acompanhar os projetos de lei que objetivam a criação deste mercado regulado, principalmente o Projeto de Lei 182 de 2024, atualmente em tramitação no Senado Federal.
Adicionalmente, a aceitação de créditos provenientes do Brasil por empresas europeias, para cumprimento de suas metas de descarbonização, é fundamental para crescimento dessa atividade no país.
Mini CV
Sócio fundador do escritório Lino, Dias e Coelho Sociedade de Advogados. Graduado pela Universidade de São Paulo – USP (2007). Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP/COGEAE (2009). MBA em Direito Agrário e Ambiental pelo Ibmec, concluído em 2022. Diretor de Sustentabilidade e Coordenador da Comissão de Sustentabilidade da Câmara de Comércio e Indústria Belgo-Luxemburguesa Brasileira (Belgalux). Membro da Comissão Permanente de Meio Ambiente da OAB/SP. Membro dos Núcleos de ESG e Empresarial da Câmara Italiana de Comércio de São Paulo (Italcam).