Um dos maiores problemas efetivos na definição de direitos reais sobre terrenos (especialmente os rurais) é a descrição perimetral da área no Cartório de Imóveis. Neste artigo, Carlos E. Elias de Oliveira nos descreve como equacionar este tema por meio dos cartórios e pela técnica do georreferenciamento.
Carlos E. Elias de Oliveira é advogado, professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília (UnB), no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT (FESMPDFT) e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal, sendo ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Doutorando em Direito pela UnB.
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Noções gerais do georreferenciamento e histórico normativo
Um dos maiores problemas efetivos na definição de direitos reais sobre terrenos (especialmente os rurais) é a descrição perimetral da área no Cartório de Imóveis.
Por conta das limitações da própria topografia no passado, essa descrição era feita com certa imprecisão, levando em conta marcos precários e a linguagem pouco técnica.
Aliás, as próprias medidas eram imprecisas. É icônica, por exemplo, a imprecisão com a qual, por exemplo, se media uma légua no passado:
“O medidor enchia seu cachimbo, acendia-o e montava no cavalo, deixando que o animal marchasse ao passo; quando o cachimbo se apagava, acabado o fumo, marcava uma légua”. Fonte: Um sertanejo e o sertão, p. 167, cit. por José Antonio da Costa Porto, Sistema Sesmarial no Brasil. Brasília: UnB, 1978, p. 76(1).
A propósito, citamos um exemplo de uma descrição precária constante da matrícula de imóvel objeto de um processo judicial(2):
“Uma propriedade rural denominada Fazenda Ribeirão de São Pedro e Ribeirão Claro, situado no município de São Pedro do Turvo, desta Comarca, com 152,00 alqueires paulistas iguais a 367,84 ha, mais ou menos, contendo benfeitorias, confrontando com Alfredo Tavantes, Guerino Maitan, Ribeirão Claro, Ribeirão São Pedro, Zeferino José de Andrade e Vicente de Andrade, Recadastrada no Incra sob nº 628.123.000.884 – área total 367,8, módulo 64,4, nº de módulos 5,71 e fração mínima de parcelamento 25,0.”
Note como é absolutamente imprecisa a descrição dessa área. É inviável, com base nessa descrição, desenhar, no mapa, o perímetro correspondente ao supracitado imóvel rural.
A evolução das técnicas de topografia chegou ao georreferenciamento. Trata-se de técnica capaz de dar as coordenadas geográficas de um imóvel com altíssimo grau precisão, levando em conta o Sistema Geodésico Brasileiro(3).
Na prática, essa descrição georrefenciada utiliza uma linguagem ininteligível ao leigo por conta de sua tecnicidade, mas permite ao técnico desenhar, no mapa, a poligonal pertinente.
Eduardo Augusto, um dos registradores brasileiros mais brilhantes na matéria, alertava o seguinte acerca da necessidade de a matrícula conter uma descrição poligonal precisa:
A leitura da descrição tabular permite que qualquer agrimensor ou matemático consiga efetuar exatamente o mesmo desenho do imóvel, sem nunca tê-lo visto em mapas, fotos e sem conhecer sua real localização.(4)
No plano normativo, a Lei nº 10.257, de 28 de agosto de 2001, é o principal marco do georreferenciamento no âmbito do Cartório de Imóveis, especificamente para imóveis rurais.
A referida norma, entre outras disposições, passou a exigir que, dentro de um prazo a ser fixado pelo Poder Executivo, a descrição dos imóveis rurais nas matrículas fosse feita com base na técnica do georreferenciamento, com base no Sistema Geodésico Brasileiro. Fê-lo por meio do art. 176, §§ 3º e 4º, da Lei de Registros Públicos – LRP (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973)(5).
O histórico da Lei 13.838/19 (PLC 120/17, PL 7790/14 CD) que dispensa a anuência dos confrontantes
Como já afirmado, todos os imóveis rurais passaram a ser obrigados, dentro do prazo estipulado pelo Poder Executivo, a ter uma descrição georreferenciada com base no Sistema Geodésico Brasileiro.
Acontece que averbar, na matrícula, uma descrição perimetral representa uma forma de retificação da matrícula, a atrair a aplicação das regras procedimentais pertinentes. Afinal de contas, essas regras procedimentais destinam-se a impedir que a retificação da matrícula termine por prejudicar direitos de terceiros confrontantes.
Basta imaginar alguém que pretenda averbar uma descrição georreferenciada do seu terreno abrangendo uma área que – no entendimento do vizinho – pertence a este. Antes do georreferenciamento, como a matrícula carregava uma descrição perimetral imprecisa, inexistia certeza tabular acerca de quem seria o efetivo proprietário da referida área.
Por esse motivo, a retificação da matrícula – que abrange a averbação da descrição georreferenciada – poderia ser realizada por meio de um procedimento judicial (art. 212 da LRP) ou de um procedimento extrajudicial (art. 213, LRP).
Na prática, qualquer que fosse o procedimento adotado, os vizinhos confrontantes haveriam de ser convocados a se manifestar, tendo em vista o risco de a retificação avançar sobre áreas deles.
No caso do procedimento extrajudicial de retificação – o qual é utilizado na maioria absoluta dos casos e que se dá perante o Cartório de Registro de Imóveis –, é obrigatório o consentimento do vizinho confrontante com a descrição georreferenciada que se pretende averbar na matrícula, consentimento esse que pode ser tácito em razão do seu silêncio por 15 dias a partir da sua notificação (art. 213, §§ 2º a 4º, LRP)(6).
Caso o vizinho apresente uma impugnação fundamentada, o registrador notificará o requerente e o engenheiro subscritor da planta e do memorial descritivo para se manifestarem em 5 dias. Não obtido o consenso, o procedimento será remetido para a via judicial, na forma dos §§ 5º e 6º do art. 213 da LRP(7).
E não há como ser diferente. Dispensar o consentimento do vizinho confrontante, ainda que tácito, é ameaçar a segurança jurídica com eventual usurpação de áreas dos confrontantes.
A exigência de consentimento do confrontante para a retificação da matrícula em razão da averbação da descrição georreferenciada foi vista como um entrave burocrático por muitos proprietários rurais.
É que, em muitas situações, os vizinhos confrontantes discordavam sem um justo motivo. Em outras, era difícil localizar os vizinhos.
Criticava-se que a lei partia de uma presunção de má-fé do proprietário, presumindo que ele haveria de usurpar áreas vizinhas por meio da descrição georreferenciada.
Alegava-se que era preciso eliminar a exigência de consentimento do confrontante.
Defendia-se que, na eventualidade de alguma área vizinha ser indevidamente abrangida, o caminho seria o vizinho servir-se dos meios judiciais cabíveis para proteção de sua área.
Brandia-se que, na prática, como todos os proprietários rurais são obrigados a fazer o georreferenciamento, esse tipo de usurpação não ocorreria, visto que o risco de sobreposição de área é praticamente nulo. A hipótese acima só haveria de acontecer de modo excepcional, envolvendo apenas os vizinhos morosos que – apesar da determinação legal – ainda não haviam promovido a atualização da descrição perimetral de seus imóveis rurais.
Por essa razão, esses setores acabaram provocando o Parlamento para dispensar o consentimento dos confrontantes nessa hipótese. Foi daí que surgiu, na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei nº 7.790, de 2014 (tombado como Projeto de Lei da Câmara nº 120, de 2017, no Senado Federal).
A referida proposição foi exitosa e transformou-se na Lei nº 13.838, de 4 de abril de 2019.
Houve, porém, um problema de eficácia na referida norma: ela não foi expressa em relação à dispensa de consentimento do confrontante no curso do procedimento de retificação. Não fez nenhuma menção ao art. 213 da LRP, que trata desse procedimento. Ela, na verdade, apenas acresceu o § 13 ao art. 176 da LRP estabelecendo que, para a inserção da descrição georreferenciada do imóvel na matrícula, era dispensada a anuência do confrontante e era suficiente a declaração de respeito das confrontações pelo requerente.
Esse texto deu ensanchas a duas principais interpretações conflitantes: (1) a de que a dispensa de consentimento se estendia aos casos de retificação extrajudicial em qualquer caso; e (2) a de que essa extensão só se daria no caso de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais.
Essa segunda interpretação – que restringe o efeito prático da nova lei – foi a que prevaleceu no âmbito do CNJ por meio da Recomendação nº 41, de 02/07/2019 – CNJ, in verbis:
Art. 1º RECOMENDAR aos registradores de imóveis que, nas retificações previstas no art. 213 da Lei 6.015/73, provenientes de georreferenciamento de que trata a Lei Federal n. 10.267/2001, dispensem a anuência dos confrontantes nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações, nos termos no art. 176, §§ 3º e 4º, c/c o § 13 da Lei 6.015/73, alterada pela Lei n. 13.838, de 4 de junho de 2019.
Com essa interpretação restritiva, a iniciativa legislativa ficou esvaziada na prática.
O entendimento que acabou prevalecendo nos cartórios foi o de que, se houver uma matrícula já com a descrição georreferenciada averbada e se o proprietário quiser divida-la (desmembramento ou parcelamento) ou aglutiná-la com outra também já georreferenciada (remembramento), a anuência dos confrontantes seria dispensada. Trata-se de uma situação raríssima e em relação ao qual inexistia qualquer problema social, pois as matrículas de origem já veiculavam a descrição georreferenciada.
Se, porém, houver uma matrícula com descrição antiga, a inserção da descrição georreferenciada dependeria de anuência do confrontante. Essa hipótese é a mais recorrente e é a que gera queixas dos proprietários rurais.
Diante desse esvaziamento prático da Lei nº 13.838, de 2019, o Poder Executivo reagiu, editando a Medida Provisória nº 910, de 2019. Esse diploma urgente incluiu, no próprio art. 213 da LRP, a dispensa do georreferenciamento no próprio procedimento de retificação extrajudicial destinado à inserção da descrição georreferenciada: era o § 17 do art. 213 da LRP(8). Com esse texto, não havia mais dúvidas: a dispensa de anuência foi estendida para qualquer caso de inserção da descrição georreferenciada, independentemente de se envolver divisão ou reunião de imóveis.
Todavia, a referida Medida Provisória caducou, sem ser convertida em lei, de maneira que o supracitado § 17 do art. 213 da LRP perdeu eficácia.
Daí se segue que, atualmente, prevalece, no âmbito dos cartórios, a interpretação que infertilizou, na prática, o art. 176, § 13, do art. 176 da LRP. Logo, a dispensa de anuência dos confrontantes não alcança os casos que efetivamente geram queixas dos proprietários rurais: as hipóteses de inserção inédita da descrição georreferenciada na matrícula dos imóveis.
Conclusão
Ao nosso sentir, não convém dispensar o consentimento dos confrontantes quando da inserção da descrição georreferenciada em razão dos riscos de usurpação de áreas vizinhas.
Precisamos atentar para o fato de que, na realidade registral brasileiras, uma enxurrada de matrículas com descrições antigas forma um nevoeiro de imprecisões: nenhum engenheiro consegue, apenas com base na sua leitura, desenhar a poligonal no mapa.
Dispensar a convocação dos confrontantes para se manifestar acerca do memorial descritivo com o georreferenciamento é incitar as usurpações de áreas vizinhas e causar um ambiente de insegurança jurídica potencialmente nocivo ao mercado.
Empresas e cidadãos que comprarem imóveis rurais confiando na descrição perimetral da matrícula estarão vulneráveis a perder áreas diante de reivindicações de vizinhos confrontantes em eventuais procedimentos judiciais.
O sistema imobiliário não pode ser um campo minado para terceiros adquirentes, com graus elevados de insegurança dos direitos.
A sociedade e o mercado reclamam por previsibilidades, segurança e clarezas das situações jurídicas, o que desaconselha tentativas de defenestrar os confrontantes do procedimento de inserção da descrição georreferenciada nas matrículas.
Seja como for, caso se queira promover essa dispensa, o caminho é legislativo: deve-se editar uma norma igual ou semelhante àquela contida na extinta Medida Provisória nº 910, de 2019. A outra via seria eventual tentativa de provocar o Conselho Nacional de Justiça para mudar a interpretação estampada na Recomendação nº 41, de 02/07/2019 – CNJ, o que seria uma via pouco promissora.
Temos de, porém, sempre estar atento para um fato: a higidez da descrição perimetral dos imóveis na tábua registral é, na verdade, a garantia sine qua non de um ambiente negocial seguro, previsível e estável. Formalidades, por vezes, são vacinas contra o caos e a insegurança jurídica.
(1) Fonte: https://mundogeoconnect.com/2011/arquivos/palestras/roberto_tadeu_teixeira-retificacao_irib_incra.pdf.
(2) Disponível: https://portaldori.com.br/2022/10/28/registro-de-imoveis-negativa-de-averbacao-de-georreferenciamento-precariedade-da-descricao-tabular-insercao-de-coordenadas-georreferenciadas-que-depende-de-previa-retific/. Publicado: 28 de outubro de 2022.
(3) Para aprofundamento, ver: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3138/tde-08112005-081539/publico/Cap_3-SGB.pdf.
(4) Disponível em: https://mundogeoconnect.com/2011/arquivos/palestras/roberto_tadeu_teixeira-retificacao_irib_incra.pdf.
(5) Veja os referidos dispositivos (que ainda hoje estão em vigor):
“Art. 176. ……………………………………..
§ 1o …………………………………………….
………………………………………………….
II – ……………………………………………..
……………………………………………….
3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação:
a – se rural, do código do imóvel, dos dados constantes do CCIR, da denominação e de suas características, confrontações, localização e área;
(…)
§ 3º Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1o será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.
§ 4º A identificação de que trata o § 3o tornar-se-á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo.”(NR)
(6) Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação:
(…)
§ 2o Se a planta não contiver a assinatura de algum confrontante, este será notificado pelo Oficial de Registro de Imóveis competente, a requerimento do interessado, para se manifestar em quinze dias, promovendo-se a notificação pessoalmente ou pelo correio, com aviso de recebimento, ou, ainda, por solicitação do Oficial de Registro de Imóveis, pelo Oficial de Registro de Títulos e Documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la.
§ 3o A notificação será dirigida ao endereço do confrontante constante do Registro de Imóveis, podendo ser dirigida ao próprio imóvel contíguo ou àquele fornecido pelo requerente; não sendo encontrado o confrontante ou estando em lugar incerto e não sabido, tal fato será certificado pelo oficial encarregado da diligência, promovendo-se a notificação do confrontante mediante edital, com o mesmo prazo fixado no § 2o, publicado por duas vezes em jornal local de grande circulação.
§ 4o Presumir-se-á a anuência do confrontante que deixar de apresentar impugnação no prazo da notificação.
(7) § 5o Findo o prazo sem impugnação, o oficial averbará a retificação requerida; se houver impugnação fundamentada por parte de algum confrontante, o oficial intimará o requerente e o profissional que houver assinado a planta e o memorial a fim de que, no prazo de cinco dias, se manifestem sobre a impugnação. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004)
§ 6o Havendo impugnação e se as partes não tiverem formalizado transação amigável para solucioná-la, o oficial remeterá o processo ao juiz competente, que decidirá de plano ou após instrução sumária, salvo se a controvérsia versar sobre o direito de propriedade de alguma das partes, hipótese em que remeterá o interessado para as vias ordinárias.
(8) Incluído pela Medida Provisória nº 910, de 2019 (Vigência encerrada)