“Falta de agência de dados permite ‘pseudoautonomia’ a órgãos públicos”

José Damico pede padronização e integração de dados públicos
José Damico, da SciCrop – imagem: arquivo pessoal

Um dos fundadores da SciCrop, empresa que emprega na agricultura conhecimentos trazidos da ciência de dados, como big data analytics e Internet das Coisas (IoT), José Damico alerta que a falta de integração e padronização das bases de dados públicos no país ameaça o agronegócio brasileiro pela falta de transparência: “A não integração e padronização dessas bases dificulta a geração de conhecimento. Além disso, permite a criação de factóides”, afirma o engenheiro de software especialista em transformação digital.

Damico saúda iniciativas como o CBERS (sigla em inglês para Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres) e o Amazônia 1, primeiro satélite 100% brasileiro e que vai ajudar no monitoramento ambiental da Amazônia, mas critica a ausência de uma agência reguladora para gestão de dados abertos – caminho seguido por muitos países e que, no seu entender, “permite uma ‘pseudoautonomia’ para cada instituição pública”. Para Damico, a criação dessa agência resolveria questões importantes, como aspectos da soberania nacional, monitoramento e respostas a ciberataques e padronização e integração da oferta de dados.

Acompanhe a entrevista na íntegra:

O agro brasileiro, hoje, é um dos (senão o mais) tecnológico do planeta. Com o mundo entrando na chamada Era dos Dados, como as ferramentas de analytics podem ajudar o agro a avançar ainda mais?

As grandes evoluções do agronegócio se deram historicamente pela mecanização, pelo desenvolvimento de defensivos e fertilizantes, pelo melhoramento genético e mais recentemente pela modificação genética, cada um desses elementos representaram saltos na produção principalmente de grãos em grandes áreas, com menos pessoas. Todo esse avanço só foi possível devido à crescente demanda de alimentos, principalmente depois da segunda grande guerra. Essa demanda impulsionou grandes investimentos em P&D (pesquisa e desenvolvimento) e a ação direta dos governos em subsidiar a aplicação de tais evoluções pelos produtores rurais. Ou seja, houve uma comoditização dos recursos tecnológicos usados no campo. A grosso modo, um produtor de soja de mil hectares possui as mesmas tecnologias que qualquer outro produtor de soja de mil hectares. Ou seja, não existe diferenciação e quase nenhuma margem para se destacar de seu concorrente. De um lado, porque os recursos financeiros para a adoção tecnológica são de alguma forma subsidiados; de outro, porque nem produtores nem a agroindústria costumam promover esses avanços e evoluções. Até então, eram quase sempre pesquisadores fundamentados sobre base científica que, ao longo de grandes períodos, desenvolveram novos produtos que modificaram o agro.

Contudo, com a chegada, primeiramente, da agricultura de precisão e, posteriormente, com a agricultura digital, vimos que o uso dos dados permitiu otimizar a eficiência operacional. Já com analytics, os ganhos podiam ser maiores e estratégicos. Mais do que isso, o uso dos dados no agro deu autonomia para toda a cadeia, do produtor à trading. Qualquer um pode, agora, não só fazer uso dos dados, mas construir seus próprios modelos e avanços tecnológicos e, assim, se diferenciar competitivamente no mercado, mesmo que de commodities. Por esse motivo, o uso de analytics no agro é tido como uma nova fronteira de produtividade.

Já em outra esfera, na das inovações de equipamento, recentemente, o primeiro trator comercial completamente autônomo foi lançado no mercado. Isso foi observado, principalmente, sob o aspecto da não utilização da mão de obra humana na operação do trator, mas o que realmente muda o jogo é que, com tratores autônomos, o sensoriamento do campo passa ser ainda mais detalhado e digitalizado. Isso permitirá que cada hectare possa ter seu próprio modelo de analytics para obtenção da máxima produtividade possível. Ou seja, promoverá ainda mais a possibilidade de diferenciação e competitividade na produção agrícola. E, no fim, é disso que se trata o analytics: aumentar a resolução sobre cada processo e comportamento a fim de construir soluções adaptáveis para cada situação.

Sob outro aspecto, não estratégico, o agronegócio, assim como outros setores, tem sido rapidamente transformado digitalmente. Processos burocráticos e operacionais, sejam da produção agropecuária, da sustentação creditória ou das regulações fitossanitárias, são hoje mediados por computadores. Isso criou um ambiente de pântanos de dados, com uma imensidão de informações. Meramente garantir a tríade de integridade, disponibilidade e confidencialidade tornou-se uma tarefa árdua. Extrair resultados contínuos e organizar esses recursos será ainda mais crítico e dependente do analytics.

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Em recente artigo, você identificou três cenários sobre a questão dos dados no agro: o primeiro formado por dados na nossa infraestrutura em sistemas isolados que não se integram – justamente a realidade dos dados públicos brasileiros. Que ameaças isso pode representar para o agronegócio brasileiro, que já enfrenta tanta pressão comercial internacional, muitas vezes baseada em dados inverídicos?

A falta de integração e padronização dos dados públicos de nosso país nos ameaça pela falta de transparência, uma vez que certas conclusões sobre nossa realidade se darão pelo cruzamento de diferentes bases, e a não integração e padronização dessas bases dificulta a geração de conhecimento. Além disso, o problema da não integração permite a criação de factóides. Por exemplo, quando uma base do Incra ou do Sigef (Sistema de Gestão Fundiária do Incra) não “conversa” com uma base do próprio Incra SNCR (Sistema Nacional de Cadastro Rural), é possível afirmar que uma determinada área exista em diferentes localidades.

Por fim, quando a existência de ilhas de informação ocorre mais do que a falta de padronização, abre-se uma perigosa porta para que esses dados tenham sua integridade comprometida por agentes internos, ou mesmo por ciberataques, ambos por interesses escusos.

Vários países, inclusive com agendas fortemente liberais, como Nova Zelândia e Países Baixos, optaram por unificar a gestão do dado público, criando agências reguladoras. Eles entendem que isso gera transparência, segurança jurídica e economicidade para os agentes econômicos, que pagam o mapa uma vez e usam várias – enquanto por aqui, pagamos várias vezes pelo mesmo mapa. Não seria essa uma parte importante da agenda de dados que você defende seja criada e conduzida no país?

É parte fundamental da agenda de dados, temo inclusive que não me parece ser compreendido por todos os órgãos públicos.

A falta de uma agência permite uma ‘pseudoautonomia’ para cada instituição pública. A ‘pseudoautonomia’ acontece, em minha opinião, de duas formas: quando a instituição não é capacitada para gerir os dados públicos ou quando, por interesses privados, a gestão dos dados públicos é fracionada para pessoas e tecnologias que não estão a serviço do bem da população.

Já, a existência de uma agência reguladora para gestão de dados abertos resolve importantes questões como: 

  • A soberania nacional sobre o que é público ao cidadão brasileiro e possivelmente público a não cidadãos;
  • Monitoramento e resposta a ciberataques;
  • Conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados);
  • Padronização da oferta de dados e sua integração;
  • Políticas emergenciais de contingência de disponibilidade;
  • Responsabilização de não conformidades;

Meu entendimento sobre essa questão é que será fundamental que uma agência como essa possua mecanismos que impeçam a nomeação por partidarismo político de gestores desqualificados tecnicamente.

Outro problema da nossa infraestrutura de dados é a questão dos dados inacessíveis e até inexistentes. Claro que, como você mesmo lembra, C. S. Lewis, autor das crônicas de Nárnia, dizia que “talvez não consigamos ter certeza, mas podemos ter probabilidade, e meio pão é melhor do que nenhum pão.” Mas, em um momento que os outros países correm em busca do pão inteiro, meio pão não pode significar ficarmos para trás?

Penso que esta questão não pode ser respondida como uma regra geral para toda nossa infraestrutura de dados. É preciso, primeiro, existir uma classificação de propósitos e riscos de inexistência e inacessibilidade de dados.

Fico muito satisfeito quando observo a qualidade da infraestrutura de dados do IBGE, do Banco Central e da Receita Federal. Entendo que os aprendizados dessas instituições podem fomentar grandes avanços para a gestão dos dados públicos de estados e municípios, em outras áreas, principalmente quanto à educação e saúde pública, o que nos traria o “meio pão” sem deméritos.

Por outro lado, sob a questão do sensoriamento remoto, ficamos para trás. Sucintamente, as missões CBERS e Amazônia 1 foram degraus necessários e bem sucedidos, mas deveríamos ter avançado mais, deveríamos estar mais próximos da ESA (Agência Espacial Europeia), fomentado a produção brasileira de constelações de satélites pequenos para observação da terra e seguido o exemplo da CNES (Centre National d’Etudes Spatiales). Para mim, isso se torna ainda mais grave pelas dimensões de nosso país, por nossa relevância na produção mundial de alimentos, pelo equilíbrio ambiental e climático do planeta e pela capacidade de tantos brasileiros extremamente qualificados na academia e no mercado que poderiam contribuir diretamente com o nosso crescimento e posicionamento internacional.

Qual a visão da SciCrop para os próximos anos, diante dos crescentes desafios de dados no Brasil e no mundo?

Na SciCrop acreditamos que o analytics será uma demanda infraestrutural nas organizações. Isso permitirá que seu uso para otimizações e previsões seja ampliado para toda a cadeia do agronegócio: produção, insumos, beneficiamento, logística, gestão ambiental, gestão de contratos, além do uso intensivo na mediação e gestão de risco da oferta de crédito e seguros.

Haverá também um crescimento expressivo na demanda por algoritmos relacionados às políticas ESG (sigla do inglês: Governança Ambiental, Social e Corporativa), principalmente quanto ao monitoramento e classificação de uso do solo, biomassa, emissão de gases de efeito estufa, sequestro de CO2, capacidade de regeneração de florestas e disponibilidade de água.

Em meio a essas novas demandas e o uso das tecnologias resultantes delas, veremos também os primeiros grandes problemas relacionados à preparação insuficiente para a LGPD e GPDR (a LGPD europeia) por parte das empresas e governos.

Mas além disso, dentro da SciCrop, temos nos preparado para ajudar nossos clientes em cenários críticos relacionados às suas informações. Temos visto como o agronegócio e a indústria de alimentos têm sido alvos de ataques de sequestro de dados que podem trazer consequências sérias para o mercado e população em geral.

Neste futuro, observaremos uma tendência de mudança dos modelos de negócio dos fabricantes e fornecedores dos equipamentos e maquinários responsáveis pelas operações industriais e de campo, e que hoje também são grandes coletores de dados. Primeiro, porque, mesmo que sejam vendidos como bens duráveis, haverá grande pressão para que toda a manutenção seja feita obrigatoriamente por agentes autorizados. Peças e partes normalmente comuns passarão a conter microchips para que seu funcionamento só ocorra mediante a ativação digital. Em continuidade a esse processo, essas empresas tentarão levar seus clientes a modelos de assinatura de uso, com a finalidade de transformar o bem em serviço, manter a propriedade com o fabricante e permitir o uso irrestrito dos dados coletados, oferecer os serviços de manutenção já mencionados e, finalmente, proibir qualquer tipo de reparo ou modificação das máquinas por parte dos clientes e operadores. Isso aumentará a tensão sobre o que é chamado de RightToRepair, que já começa a ser sentido na América do Norte.

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