O Brasil precisa rever a configuração regional, criando a sexta região, a Noroeste, com os principais estados amazônicos, e a deixando a região Norte apenas com Pará, Amapá, Tocantins e o Maranhão, que deixaria a região Nordeste. Essa é a bandeira do geógrafo José Donizete Cazzolato, mestre em Geografia pela USP e especialista em questões territoriais e identidades geográficas. Para Cazzolato, que falou com exclusividade ao Geocracia, a importância das macrorregiões brasileiras extrapola a função de facilitador da gestão federal. “Por coincidirem com os limites estaduais, foram facilmente assimiladas pela sociedade, tanto nos meios técnicos como entre os chamados cidadãos comuns. São um eficaz ferramental de análise comparativa, ao mesmo tempo que operam como organizadoras das grandes identidades que compõe a percepção de brasilidade”, afirma o geógrafo, que teve importante participação no projeto de Territorialização da Prefeitura Municipal de São Paulo (resultando na atual divisão do município em 96 distritos).
Membro da Equipe de Transferência do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), Cazzolato defende a criação no Mercosul de algo semelhante às Nomenclaturas das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos (NUTs) criadas pela União Europeia e fala das recentes propostas de criação do Estado do Tapajós e do Distrito Federal de Fernando de Noronha – esta última “pouco apropriada”, na sua opinião. “A criação de Tapajós, por outro lado, pode ser uma ação com impactos importantes no arranjo federativo e no desenvolvimento econômico local”, aponta.
Leia, abaixo, a entrevista na íntegra.
O que significa regionalizar o Brasil e por que isso é importante?
Regionalizar significa compartimentar um território conforme suas nuances físicas, culturais ou funcionais, estabelecendo, como resultado, uma trama regional. Lembrando que há uma diferença fundamental entre região e território. Ambos são uma porção do espaço geográfico, possuem um nome e são delimitados, porém o território inclui um aparato de poder, ou seja, é uma unidade político-administrativa.
No caso do Brasil, é importante regionalizar por conta da grande extensão do país. Mesmo com três níveis territoriais estabelecidos pela Constituição – a União, os Estados e os Municípios –, a distância escalar entre eles requer compartimentações intermediárias.
O planejamento, distribuição e monitoramento dos recursos e serviços a cargo da União teriam eficácia menor se conduzidos unicamente com base nas 27 unidades estaduais. O recorte das cinco macrorregiões facilita a identificação de características, carências e potencialidades comuns aos diferentes grupos de Estados.
Do mesmo modo, a administração estadual, se organizada exclusivamente pela trama territorial municipal, pode ser uma tarefa quase impossível: em média, cada Estado tem 214 municípios. Surgem então os recortes regionais aglutinando os municípios, pelas tradicionais características físicas, como Campos Gerais ou Vale do Ribeira, ou pela funcionalidade de grandes polos urbanos – Região de Dourados, Região de Montes Claros etc.
A regionalização, portanto, impõe-se como um ferramental de gestão, permitindo a adequação da administração às diversas nuances geográficas do território. Ao mesmo tempo, o foco proporcionado pelas tramas regionais permite à sociedade olhares mais apurados da realidade nacional ou estadual.
Um terceiro ponto a ser destacado em relação à regionalização é sua importância no reforço das identidades geográficas. O brasileiro tem especial apreço pelo local de nascimento ou de residência. Sente-se vicentino, cratense ou luquense. Mas também se identifica com a Baixada Santista, com o Cariri, com o Nortão, e, em escala nacional, com o Estado e com as tradicionais macrozonas.
Citou três níveis territoriais estabelecidos pela Constituição – União, Estados e Municípios. O Distrito Federal (DF) não seria um quarto nível?
Observação interessante. Em termos legais, trata-se de uma Unidade da Federação diferenciada, se observamos sua posição no texto do Artigo 1º da Constituição Federal, estabelecendo que a República é “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”, e, adiante, no Artigo 32: “Ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios”.
Como geógrafo, porém, sou levado a considerar o DF como uma das Unidades da Federação, por uma questão de escala e também pela prática das análises: tradicionalmente, na produção e no manuseio dos dados geográficos consideram-se as 27 UF e os 5570 municípios. Sabe-se, porém, e quase sempre ressalvamos nos relatórios ou metadados, que os municípios, a rigor, são 5568. Chega-se ao número de 5570 porque são considerados, estatisticamente, Brasília e Fernando de Noronha. Este é um distrito do Estado de Pernambuco, enquanto Brasília é a capital federal. Não existe o município de Brasília, porque não cabe ao DF dividir-se em municípios.
O Distrito Federal tem Governador e Câmara Legislativa, e tem representantes na Câmara Federal e no Senado, o que o faz, na prática, equiparar-se às demais Unidades da Federação. Também este aspecto leva a maioria dos profissionais ou pesquisadores a incluir o DF na instância estadual.
Atualmente, o Brasil é dividido entre as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Sempre foi assim? Quem definiu essa divisão?
Não, houve outros arranjos. São Paulo, por exemplo, na divisão anterior fazia parte da Região Sul, enquanto a Bahia ficava na Região Leste. Com a criação do IBGE, em 1936 (governo Vargas), a regionalização do país passou a ser oficial. O primeiro arranjo mais duradouro foi o de 1950, quando se unificaram as subdivisões do Nordeste e do Leste: do Maranhão até Alagoas passou a ser simplesmente Nordeste, e de Sergipe até o Rio de Janeiro passou a ser Leste. As regiões Sul (de São Paulo até o Rio Grande do Sul), Centro-Oeste e Norte mantiveram-se.
A atual divisão foi estabelecida em 1969, também pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e ratificada por legislação federal (Decreto 67647 de 23/11/1970).
No entanto, em 1988, a divisão macrorregional incorporou uma alteração de ordem estritamente política, como explicamos em artigo recentemente publicado na revista franco-brasileira Confins. Por isso, temos o Tocantins ‘dependurado’ na Região Norte, descaracterizando a trama. Propusemos, desde 2005, que se retorne ao arranjo anterior, mantendo Tocantins no Centro-Oeste ou então que se promova um ajuste mais abrangente, criando-se uma nova unidade macrorregional composta por Amapá, Pará, Tocantins e Maranhão. O Maranhão passaria a integrar a Região Norte, enquanto Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima constituiriam a Região Noroeste [figura abaixo].
A importância das macrorregiões brasileiras extrapola a função de facilitador da gestão federal. Por coincidirem com os limites estaduais, foram facilmente assimiladas pela sociedade, tanto nos meios técnicos como entre os chamados cidadãos comuns. São um eficaz ferramental de análise comparativa, ao mesmo tempo que operam como organizadoras das grandes identidades que compõe a percepção de brasilidade.
Essas condições somaram-se a outros dados embasando os argumentos em favor da criação de uma sexta região – a Noroeste –, paralelamente à reconfiguração da região Norte, onde as últimas décadas proporcionaram um adensamento da ocupação com forte interação entre Tocantins, Maranhão e Pará. O arranjo proposto reconhece essa nova regionalidade e recupera o equilíbrio que a trama regional de 1970 apresentava.
Tem se falado muito sobre criar o estado de Tapajós e em federalizar Fernando de Noronha. O que isso significaria para o desenvolvimento do país?
O estado de Tapajós foi proposto em 2011 e levado a plebiscito juntamente com Carajás. A criação de ambos resultaria em importante reconfiguração territorial no Norte do país, com três novas unidades de dimensões compatíveis com o padrão que se observa na trama de UF brasileiras. Em 2021 um novo projeto de criação de Tapajós avançou no trâmite legislativo, mas com contornos territoriais geograficamente inadequados, como demonstramos em texto postado aqui mesmo no Geocracia.
A federalização de Fernando de Noronha apenas oficializaria o que já se pratica, ao que parece. A gestão do arquipélago, assim como outras Unidades de Conservação federais, está a cargo do ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autarquia em regime especial vinculada ao Ministério do Meio Ambiente.
A transformação de Fernando de Noronha em Território Federal, se for esta a proposta a que a pergunta se refere, parece pouco apropriada, dadas suas reduzidas dimensões (territoriais, demográficas e econômicas) e sua condição especial – todo o arquipélago faz parte do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha.
Fernando de Noronha foi Território Federal até 1988, quando a Constituição o reduziu ao status de distrito estadual, figura geojurídica esdrúxula – os distritos são a subdivisão dos municípios. Caberia, talvez, alçá-lo a município, o que, de todo modo, não mudaria sua condição tão particular – a de pertencer integralmente a uma Unidade de Conservação federal. Alguns defendem ainda sua transferência para o Rio Grande do Norte, com cujo litoral o arquipélago confronta.
A criação de Tapajós, por outro lado, pode ser uma ação com impactos importantes no arranjo federativo e no desenvolvimento econômico local. Em publicação de 2011 [“Novos Estados e a divisão territorial do Brasil – uma visão geográfica” – Ofitexto], analisamos as propostas de divisão que tramitavam no Congresso desde a promulgação da atual Constituição, assim como demonstramos a existência de um padrão dimensional no conjunto das Unidades da Federação, certamente mais adequado à gestão do que os estados que extrapolam as dimensões consideradas, principalmente a extensão territorial.
Nesse estudo, consideramos não apenas a criação de Tapajós e Carajás, mas também outros Estados, como o Triângulo Mineiro, Planalto Central e São Francisco e Territórios Federais como Solimões. O argumento contrário mais frequente em relação à reorganização territorial do país reside nos gastos necessários para a implantação das novas estruturas governamentais, que se desdobram em Executivo, Legislativo e Judiciário. No entanto, aproximar o governo da sociedade, otimizando a administração pública, pode ser considerado um investimento, não uma despesa, como bem exemplificam Tocantins e Mato Grosso do Sul.
Além disso, mesmo com o quadro atual, é evidente que as máquinas administrativas requerem urgentes reengenharias, dado o desnecessário custo de suntuosas instalações, níveis salariais e benefícios muitas vezes incompatíveis com a realidade regional, número excessivo de assessores ou comissionados etc – sem falar nas aposentadorias com valores injustificáveis de deputados, juízes e outros funcionários de alto escalão.
Em que pese haver diversos recortes regionais, as regiões brasileiras mais conhecidas em termos de redistribuição de renda são o Polígono das Secas e as zonas francas, principalmente a de Manaus. Quais são as outras regiões que merecem destaque?
Falamos até aqui das macrorregiões do IBGE, cuja denominação mais apropriada é Grandes Regiões. Há outras formas de compartimentar o território nacional, porém nem todas obedecendo aos limites político-administrativos das Unidades da Federação e nenhuma com o alcance, a tradição e a assimilação popular que caracteriza as atuais macrorregiões.
Ainda no âmbito do IBGE, são publicados com regularidade recortes baseados na funcionalidade dos grandes polos urbanos, como as Regiões de Articulação Urbana ou as Regiões de Influência das Cidades. Estudos similares são também elaborados por outras instituições, como o CEDEPLAR, de Belo Horizonte.
No meio acadêmico, ainda se utilizam os complexos regionais ou regiões geoeconômicas propostas nos anos 1960 pelo geógrafo Pinchas Geiger, que divide o país em Amazônia, Nordeste e Centro-Sul (com pequenos ajustes, esta mesma divisão foi sugerida 20 anos mais tarde por Lobato Correia). Na passagem para o século atual, os também geógrafos Milton Santos e Silveira reconheceram quatro grandes unidades macrorregionais: Amazônia, Nordeste, Centro-Oeste e a Região Adensada (composta pelos atuais Sudeste e Sul).
No âmbito governamental, muitos ministérios ou órgãos como a Receita e a Justiça Federal, o Exército ou a Funai têm divisões regionais próprias. Também de cunho oficial, temos a notória Amazônia Legal e o citado Polígono das Secas. As macrorregiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por sua vez, são citadas e particularizadas no texto constitucional referente a partilha de recursos, assim como o semiárido do Nordeste (equivalente ao Polígono das Secas).
De uns dez anos para cá, ganhou evidência a região do Matopiba, composta por porções de Cerrado dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. E ainda é utilizada, no Nordeste Ocidental, a regionalização por faixas (definidas por critérios ambientais) que se sucedem a partir do litoral – Zona da Mata, Agreste e Sertão.
Temos também as regiões do CEP (Código de Endereçamento Postal) e as do DDD (código telefônico), a partir das quais se organizam também outras divisões macro e mesorregionais, como as das emissoras de televisão.
E não se pode esquecer a divisão do país em grandes bacias hidrográficas, assim como a dos grandes biomas: Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal e Pampa, sem dúvida a mais conhecida e utilizada por todas as entidades com foco na preservação ambiental.
Quanto à Zona Franca de Manaus, é um caso particular, porque envolve uma ação específica de incentivos fiscais industriais no município de Manaus (Zona Franca), o estabelecimento de Áreas de Livre Comércio em localidades amazônicas de fronteira e a extensão de outros incentivos para a Amazônia Ocidental (parte da Amazônia Legal). Ainda que seja considerado um sucesso na geração de empregos, na produção industrial e na arrecadação (embora embasado na isenção de diversos impostos), o modelo da ZFM não foi replicado no país.
Para efeitos de redistribuição de recursos e com o objetivo de ressignificar o conceito de regionalização sem alterar as regiões clássicas, a União Europeia (UE) criou o conceito da Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos (NUT). Caberia uma regionalização assim no âmbito do Mercosul?
Certamente. A União Europeia congrega países com muitos séculos de história, uma enorme dinâmica de fronteiras e arranjos territoriais, línguas e culturas diversas. Se, mesmo assim, em poucas décadas, a UE conseguiu chegar ao objetivo de estabelecer uma trama harmonizada de regionalização nos 27 países-membros, não haveria por que não se conseguir algo similar no Mercosul, que é formado por apenas cinco países-partes e sete associados, todos com um histórico recente e comum (ou similar) de ocupação territorial.
O sistema NUTS (Nomenclatura Comum das Unidades Territoriais Estatísticas) vem sendo implantado e aprimorado na UE desde 2003 com o objetivo principal de coletar, organizar e difundir os dados estatísticos subnacionais de todos os países-membros, embasando políticas regionais e fortalecendo a coesão do Bloco. Não se pode esquecer, nesse sentido, que a UE já opera com moeda única desde o início deste século.
O nível de integração a que chegou o Mercosul, porém, está muito aquém da União Europeia, seja porque é uma experiência mais recente, seja porque sempre esteve muito dependente de oscilações políticas internas de seus formadores. Sua presença no cenário econômico, técnico ou cultural é bastante tímida no Brasil, considerando-se sua pouca visibilidade na mídia em geral.
Uma ação importante de afirmação do Bloco poderia ser a padronização das placas veiculares, em processo de implantação desde 2018. No entanto, o grande número de alterações incorporadas desde então, no modelo e nos prazos, revela a fragilidade política do Mercosul, lançando dúvidas sobre as reais possibilidades de se avançar em outros projetos de envergadura, como seria estabelecer uma cartografia harmonizada de recortes regionais subnacionais aos moldes da União Europeia.
De todo modo, o desafio está em aberto.