Reportagem do jornal Valor publicada na semana passada mostra na prática uma denúncia que já vem preocupando autoridades, ambientalistas e até ameaçando o agronegócio: o uso do Cadastro Ambiental Rural (CAR) por grileiros para legitimar terras invadidas. A matéria foca na região da terra indígena (TI) do Vale do Javari (AM), próximo do local onde foram mortos o o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Philips, há cerca de um mês, mas o problema estaria generalizado.
Só naquela região, que compreende os municípios de Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Jutaí e São Paulo de Olivença, existem, pelo menos, 14 mil hectares de propriedades com CAR registrados dentro da TI. Os dados são do próprio Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar).
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De acordo com a reportagem, a maioria dos registros do CAR em conflito com a TI está suspensa por informar toda sua extensão dentro da área demarcada. Mas existem cadastros com apenas parte da área conflitante com a terra indígena e que estão registrados como “pendentes” de avaliação.
“O que acontece no Vale do Javari é a ponta do iceberg”, diz ao Valor Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Segundo o pesquisador, esses casos mostram que grileiros vêm usando o CAR para legitimar a invasão de terras. “Com esse recurso [do CAR], eles levantam dinheiro com terceiros, às vezes até em banco, para ocupar terras públicas”, diz.
O maior problema do CAR, segundo críticos, é que o preenchimento das informações se dá de forma autodeclaratória – é o proprietário que insere os dados –, apesar de o sistema ser gerido pelo governo federal. Já a análise e checagem dos dados informados, a cargo dos governos estaduais, anda muito lentamente. Ao longo de dez anos, 6,5 milhões de imóveis rurais foram declarados no CAR, mas pouco mais de 28 mil foram analisados, o que é menos de 0,5% do total.
A advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), argumenta que a plataforma do CAR deveria impedir de antemão que alguém pudesse realizar um cadastro sobre terras indígenas. “Como os órgãos ambientais estão permitindo que se façam cadastros sobre áreas que deviam estar bloqueadas?”, questiona a advogada, acrescentando que quem registra propriedades sobre áreas demarcadas faz isso com a expectativa de revisão futura da demarcação das terras indígenas e de legalização da invasão de terras públicas. “Bolsonaro entrou prometendo reduzir terras indígenas. Isso pode ter gerado uma expectativa nas pessoas”, diz.
Segundo Moutinho, a atividade dos grileiros é uma “bomba relógio” de desmatamento para os próximos anos que pode prejudicar inclusive o agronegócio. “Vai furar o regador do país, porque quebra o fluxo de água que vem do Oceano para o continente, e os rios voadores deixam de voar”, diz Moutinho.