Em uma entrevista ao Geocracia dividida em duas partes, o arquiteto Jorge Francisconi faz um raio-X do planejamento urbano brasileiro, sua evolução ao longo dos últimos 60 anos e aborda o importante tema das cidades inteligentes. Nessa primeira parte (a segunda será publicada na próxima segunda-feira), Francisconi, que é Master in Regional Planning – MRP e PhD em Ciências Sociais pela Maxwell School of Public Administration and Citizenship da Syracuse University, com ênfase em Economia Urbana, Planejamento Regional e Regiões Metropolitanas, critica a “enorme confusão conceitual que domina as redes sociais, as manifestações de gestores urbanos, de especialistas e de acadêmicos” sobre o que são cidades inteligentes: “Uma armadilha preocupante é a falta de precisão do que seja uma cidade inteligente. Sem uma definição precisa, será impossível estabelecer políticas nacionais, estaduais e municipais; definir fronteiras e prioridades, e estabelecer os procedimentos e os instrumentos que qualificam e caracterizam uma cidade como cidade inteligente”.
O que é o planejamento urbano brasileiro e suas fases?
Para que serve o planejamento? Para definir o que se quer, para estabelecer metas e procedimentos, implantar processos de gestão e governança, avaliar resultados e corrigir rotas e procedimentos.
O planejamento urbano é um instrumento da gestão e da governança que está sempre em processo de mutação. Nisso sigo Keynes: “Quando a realidade econômica muda, minhas convicções acadêmicas também mudam”. E as fases por que já passou o planejamento urbano brasileiro reforçam esse pensamento. No futuro, haverá fases que irão corresponder à evolução das circunstâncias políticas, econômicas, sociais, culturais, tecnológicas e do saber – puro e aplicado – disponível.
A meta do planejamento na gestão pública é oferecer aos moradores uma cidade com qualidade econômica, social, cultural, ambiental, urbanística e tudo mais. Para isso utilizando-se do saber teórico e do saber aplicado da ciência urbanística, que serão utilizados para fazer o diagnóstico, estabelecer metas e procedimentos e aferir resultados.
Os processos da gestão e da governança urbana devem ser avaliados a partir dos resultados obtidos. A administração de cidades envolve processos (de gestão e de governança) cuja meta é alcançar objetivos definidos na fase de planejamento do território. E aqui vale lembrar o líder chinês Deng Xiao Ping. “Não importa a cor do gato. O que importa é que mate os ratos.”
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Penso que o Planejamento Urbano Brasileiro Contemporâneo inicia nos anos de 1960, mas sem ignorar que a “ruação” (ruas e lotes) de cidades coloniais era implantada por “ruadores”, que com cordas obedeciam aos planos de engenheiros militares, os quais seguiam os preceitos das cortes ibéricas. Ou que, no final do Século XVIII, houve o planejamento e a construção de “capitais provinciais”, como Teresina e Belo Horizonte. A capital mineira adotando os fundamentos urbanísticos de Washington e Paris. Já no início do século XX, houve planos de embelezamento, de valorização de funções nobres e de fortalecimento dos sistemas viários de áreas centrais de capitais de estados. Mais tarde, uma sequência de endemias fortaleceu os serviços de saneamento no planejamento urbano, assim como houve planos diretores destinados a manter e reforçar a qualidade viária e funcional das cidades e “planos de melhorias” inspirados no positivismo gaúcho, que incluíam a beleza do espaço urbano como prioridade.
A partir dos anos 60, década em que Brasília torna-se tema mundial e o país passa a ser uma nação urbana, ainda que o café lidere as exportações, os grandes fluxos migratórios passam a exigir políticas urbanas destinadas a enfrentar o “inchamento urbano”, a explosão de favelas e o desemprego dos que migram para as metrópoles regionais e para as metrópoles nacionais – São Paulo e Rio de Janeiro.
Os 2 fatos seminais da Gestão e do Planejamento Urbano Contemporâneo ocorrem no biênio 1963/1964 e são as recomendações do Seminário de Quitandinha (1963) e o Memorando de Sandra Cavalcanti (1964).
- O Seminário de Quitandinha foi preparatório para o Congresso da UIA em Cuba (agosto/1963), tratou de políticas habitacionais e de plano territorial nacional. Suas propostas foram incluídas nas Reformas de Base do Presidente João Goulart (1963/1964), serviram de inspiração para o Movimento Nacional da Reforma Urbana (1980) e estão presentes na Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) que o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) e o IPEA estão formulando atualmente (2019/2022).
- O Memorando de Sandra Cavalcanti (1964) praticamente definiu o roteiro da política urbana adotada nos 20 anos de autoritarismo desenvolvimentista, quando o planejamento urbano foi integrado ao planejamento econômico e social. O Memorando propôs a criação de banco (BNH) para financiar habitação, saneamento, indústria de materiais de construção e sistemas pré-fabricados; a construção de núcleos habitacionais dotados de saneamento, educação, segurança, transporte público e tudo mais; a criação de entidade que promova o planejamento urbano (SERFHAU), além de outras diretrizes.
As duas grandes fases do planejamento urbano que tivemos, desde os anos 60, correspondem aos dois fatos seminais acima citados.
FASE – 1964 /1984 — agravamento da crise urbana, política econômico-financeira integrada ao desenvolvimento urbano-territorial, com gestão interfederativa centralizadora, autoritária, desenvolvimentista e modernizante. A crise urbana se agrava nos anos 70. A metrópole paulista tem crescimento demográfico de 500 mil pessoas/ano durante toda década. O que equivale a um novo Plano Diretor de Brasília a cada ano.
A política econômica cria o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) para estimular a poupança nacional (FGTS), os recursos sendo aplicados em habitações, saneamento e desenvolvimento urbano a partir do BNH, que funciona como se fosse um banco nacional de desenvolvimento urbano.
Superintendências Regionais (SUDENE, SUDECO, SUDAM etc) coordenam projetos nacionais para reduzir as disparidades e as migrações regionais, e apoiam planos municipais, microrregionais e metropolitanos. O SERFHAU, ligado ao BNH, financia cadastros municipais, planos diretores e melhorias da gestão municipal e metropolitanas.
A partir de 1974, os planos nacionais de desenvolvimento (PNDs) incluem o Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) — interfederativo e interdisciplinar – como componente territorial. A coordenação da PNDU é feita por comissão junto a Presidência da República (CNPU) ou conselho no Ministério do Interior (CNDU). Ambos com membros da sociedade civil dotados de notório saber ou representando diferentes entidades.
Os planos nacionais, estaduais, metropolitanas e municipais tornam-se temas debatidos com políticos — que desconfiam da ideia de gestão e de planejamento técnico da atividade pública, da capacitação técnica e da meritocracia no funcionalismo público. Como exigia o Decreto Lei 200.
O autoritarismo, com seu planejamento interfederativo e desenvolvimentista, desaparece de forma gradual durante os anos 80, sendo substituído pela democracia representativa, descentralizada e cidadã da Constituição Federal de 1988.
FASE II – 1988/2020: Os municípios passam a ser responsáveis, praticamente exclusivos, do que acontece em seus territórios. A gestão metropolitana é entregue a cada Estado. O Estatuto da Metrópole chega com décadas de atraso e não consegue resolver o caos instalado. As instituições e os instrumentos legislativos e financeiros federais, que tratam da questão urbana, são desativados ou extintos a partir de 1984.
Em 2003, surge o Ministério da Cidade (MC), que promove políticas urbanas baseadas nos princípios da sustentabilidade, do direito à cidade e do processo participativo. Atento aos princípios e objetivos do Movimento da Reforma Urbana (MNRU), o MC promove uma reviravolta nos procedimentos da gestão urbana quando adota uma visão gramsciana de participativismo, a partir da qual decisões de assembleias de bairros assumem competências antes atribuídas ao poder executivo e legislativo municipal. As políticas metropolitanas e de planejamento integrado e interfederativo desaparecem. A VI PNDU, elaborada em 2003, orientou as atividades que o MC realizou até 2010 e que foram reativadas em 2019, a partir do MDR, IPEA e GIZ (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit).
O processo participativo, associado às metas do desenvolvimento urbano sustentável e do direito à cidade, são consagrados na CF e no Estatuto da Cidade e constituem a linha de pensamento do MNRU — que se tornou hegemônico nas universidades e dominante na gestão urbana municipal. Depois de quase 40 anos de dominância de governança urbana orientada pelo direito à cidade e pela ideologia do MNRU, as teorias do direito urbanístico ganharam importância — em detrimento do território, do saber urbanístico e do planejamento urbano na gestão pública.
FASE III – 2021/futuro: a presença de novas tecnologias na práxis da vida urbana, como as tecnologias de informação e comunicação (TICs), estão alterando e têm potencial para promover enormes transformações na vida urbana. As TICs são essenciais para melhoria das condições urbanas e para o desenvolvimento sustentado. Cada nova tecnologia corresponde a uma nova expectativa.
Estamos hoje entrando em uma nova fase de expectativas da população, num cenário de enormes problemas e grandes carências urbanas, que talvez possam ser solucionadas ou atenuadas mediante o uso de novas tecnologias. Entendo assim que é necessário formular novas políticas urbanas e deixar para trás aqueles conceitos e práticas que já deram o que tinham que dar.
Os fatores mais promissores e visíveis da nova fase são o ambíguo conceito de cidade inteligente e as ambiciosas propostas da Carta aos Brasileiros. As três fases estão descritas em livro que acabo de publicar (“Além de Rio e Sampa…”) sobre a evolução e os desafios do planejamento urbano no Brasil.
A Revolução Digital trouxe enormes desafios para o planejamento urbano. Mas o que é uma cidade inteligente (ou smart city) para além do forte emprego de tecnologias?
Segundo Alex Abiko, da ABNT, existem mais de 180 definições do que seja uma cidade inteligente. O Brasil precisa adotar conceito que corresponda ao que somos e ao que queremos e evitar traduzir ISOs internacionais distantes do que temos aqui. No ambiente de mudanças tecnológicas que vivenciamos, os procedimentos de convivência e de relacionamento social, as expectativas da população, a produção econômica e cultural e os métodos de gestão do poder público, de governança urbana e de participação cidadã estão sendo totalmente refeitos pela Revolução Digital, e é necessário planejar seu uso para evitar vácuos e armadilhas.
Uma armadilha preocupante é a falta de precisão do que seja uma cidade inteligente. Uma enorme confusão conceitual domina as redes sociais, as manifestações de gestores urbanos, de especialistas e de acadêmicos. Mas, sem uma definição precisa do que seja a cidade inteligente, será impossível estabelecer políticas nacionais, estaduais e municipais; definir fronteiras e prioridades, e estabelecer os procedimentos e os instrumentos que qualificam e caracterizam uma cidade como cidade inteligente. Para mostrar a importância de conceitos precisos em programas urbanos ofereço dois exemplos do passado recente:
Como sucesso, a seleção das smart cities globais, um conceito concebido pela Universidade da Pennsylvania e pela Fundación Metrópoli de Madrid, nos anos 80, a partir de critérios claros e precisos. O que resultou na escolha das 20 smart cities globais da época, sendo Curitiba a única brasileira nessa lista.
Como fiasco, o artigo 25 da CF de 1988, que entregou a governança metropolitana aos estados, sem estabelecer qualquer critério básico, qualquer norma quanto a territorialidade e atribuições dos gestores metropolitanos no país —ainda que essa legislação complementar esteja prevista na própria CF. A omissão do poder executivo e do poder legislativo federal gerou um cenário de caos generalizado, cada estado adotando os conceitos que atendiam aos interesses políticos de governantes e ignorando as características dos problemas metropolitanos. Em Santa Catarina, todo o território estadual é metropolitano. No Amapá, está localizada uma das mais extensas metrópoles do país. E há metrópoles com menos de 50 mil habitantes. Ou seja, a omissão do governo federal quando, em parte por razões ideológicas, não estabeleceu normas precisas para o artigo 25 da CF, acabou por destruir a governança metropolitana que, gradualmente, surgia e promoveu a decadência e extinção das entidades metropolitanas no país. Uma lacuna que o Estatuto da Metrópole (2016) tentou atenuar sem sucesso. Nos dias de hoje, especialistas em questões urbanas reclamam por gestores na escala metropolitana.
Os dois exemplos acima mostram a importância de definir o conceito e o que se quer com rigor e precisão. Como contraponto, temos a grande confusão conceitual vigente nas rede sociais, como se observa em recente texto da traDUS, me parece demasiadamente amplo e genérico:
“Cidades inteligentes são economicamente férteis! E o que isso significa?
“São cidades que: Incentivam a economia local, por meio de isenção de impostos e financiamento;
“Fortalecem a compra e venda de produtos locais;
“Usam os recursos naturais de forma sustentável garantindo a sua conservação;
“Geram emprego e renda;
“Auxiliam a produção local para aumentar a dinâmica econômica da cidade e da região.
“São cidades que usam a tecnologia para impulsionar a economia local e melhorar o bem-estar da sociedade e de todas as pessoas.”
Como se o uso de tecnologias agrícolas ou isenção de impostos, que pouco geralmente trazem para a população, caracterizassem a cidade inteligente.
Como acredito que o Brasil precisa ser consistente para ter sucesso e para tornar-se player internacional no campo das cidades inteligentes, devemos definir quais os padrões mínimos para que uma cidade (ou metrópole) seja incluída nessa categoria. Meu entendimento é que cidade inteligente é aquela que utiliza TICs na gestão e na governança urbana, com impacto mensurável na qualidade de vida da população urbana.