INDE em Xeque: o futuro incerto da Geoinformação no Brasil

As Infraestruturas de Dados, em especial as Espaciais, no contexto dos tão propagados processos orientados a dados (data-driven), são pilares fundamentais para a segurança jurídico-territorial e tomada de decisão privadas e públicas envolvendo o Território. A Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) brasileira, instituída pelo Decreto 6.666 de 2008, representa um marco na organização e disponibilização de dados geoespaciais no Brasil, buscando promover a integração entre diferentes níveis de governo, o setor privado, a academia e a sociedade civil.

No entanto, recentes avaliações do Tribunal de Contas da União (TCU), apresentadas no Acórdão 2458/2023 sob a relatoria do ministro Walton Alencar Rodrigues, apontaram desafios significativos na efetivação da INDE, com destaque para a subutilização e a dispersão de dados geoespaciais entre as instituições federais, incluindo barreiras técnicas, institucionais e de governança, além da necessidade de maior integração e otimização dos recursos disponíveis.

Due Diligence

A Geocracia convidou o Prof. Edilson de Souza Bias*, do Instituto de Geociências da Universidade de Brasília (UnB), especialista na área com grandes contribuições ao setor Elétrico brasileiro e que teve as INDEs como tema de seu pós-doutorado, entre os anos de 2019 e 2020, para trazer sua visão sobre os avanços, desafios e potencialidades das Infraestruturas de Dados.

Como você vê a evolução da Infraestrutura de Dados Espaciais no Brasil desde o início até o presente, especialmente à luz do recente Acórdão do TCU?

Um primeiro aspecto que não podemos deixar de abordar, logo no início, é que uma IDE representa a democratização da geoinformação para todos os níveis da sociedade, da mesma forma que uma IDE é para todos, em qualidade, quantidade de dados e facilidade de acesso. Estes devem ser os objetivos principais a serem alcançados.

Dados importantes sobre a consolidação da INDE, podem ser observados no documento “Plano de Ação para Implantação da INDE”, que utilizamos para recordar alguns elementos, contextualizando o tema para melhor entendimento. 

A Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais, foi instituída por meio do Decreto Presidencial 6.666 em 27 de novembro de 2008, sendo que em dezembro do mesmo ano, a CONCAR (Comissão Nacional de Cartografia, atualmente desativada), votou pela criação da CINDE – Comité Técnico da INDE – constituído por 110 membros, que representavam 26 instituições, das quais 22 eram ligadas ao governo federal. 

Como todas as IDE, distribuídas por diversos países, o Plano de Ação da INDE descrevia as linhas de ação para os respectivos produtos, além de definir prazos, responsabilidades e custos. 

Foram estabelecidos 3 ciclos para a implantação, a saber: Ciclo I (dezembro de 2010), prazo para que todos os atores federais tivessem se tornado um “nó” e começado a publicar os seus dados e metadados geoespaciais. O Ciclo II (2011 a 2014), estabelecia o prazo para a consolidação do DBDG – Diretório Brasileiro de Dados Geoespaciais, trazendo também a disponibilização dos serviços: WFS, WCS, prevendo a integração com outras IDEs continentais, temáticas, regionais, institucionais e corporativas, e, transformando-a (a INDE) na principal ferramenta de busca, exploração e acesso de dados e metadados geoespaciais. Finalmente, o Ciclo III (2015 a 2020), almejava-se que a INDE tivesse chegado a todos os setores produtivos da sociedade.

Já se passaram 16 anos do Decreto 6.666, observamos muita coisa feita, e, realizando uma avaliação mais minuciosa, identificamos ainda, um longo caminho a seguir. Este caminho tem como premissas, um maior envolvimento dos entes produtores de dados, uma melhoria na forma de organização, qualidade e distribuição dos dados e de seus metadados, além de tornar a plataforma mais amigável, para atrair mais usuários. 

Destacamos uma pesquisa que realizamos entre os anos de 2019 e 2020, em 8 países da América do Sul (excetuando a Venezuela e o Paraguai que estava em fase inicial de organização de uma IDE), avaliando as IDEs, junto às coordenações e aos usuários. Destes, tivemos 324 participações, o que foi considerado com uma boa massa de dados. 

Quanto a usuabilidade das IDEs, as respostas sinalizaram 165 respostas informando que nas pesquisas usavam a plataforma do Google Map e Bing e 107 utilizavam as IDEs, as demais respostas se dividiram para outras opções de busca. Interessante refletir que as IDE apresentam os dados oficiais produzidos no âmbito de cada país. Dados que devem seguir um padrão de normalização e qualidade.

Outras questões que mostram o porquê da baixa procura, ficou expressa numa questão que buscava conhecer a facilidade de acesso aos dados, sinalizando o catálogo de metadados, o visualizador e os serviços disponíveis, com opções de fácil, relativamente fácil e difícil. 42 respostas sinalizaram para o aspecto de facilidade no acesso aos metadados, 103 para os visualizados e, finalmente, 74 para os acessos aos serviços. 

Consultando a página da INDE, encontramos 53 instituições que são “nós” atuais. Entretanto o quantitativo de dados em algumas é insignificante, sem entrarmos na discussão da qualidade dos dados e dos metadados. Neste particular, na pesquisa citada, 21% dos respondentes informaram a não utilização dos dados em razão da desatualização e 23% da falta de qualidade dos dados.

Estes aspectos podem explicar a conclusão apresentada pelo Acórdão do TCU, decorrente da fiscalização realizada na INDE, como:

  1. Poucos órgãos e entidades federais têm divulgado e compartilhado os respectivos dados geoespaciais;
  2. Grande dispersão dessas informações; 
  3. Potencialidade imensa a ser explorada na utilização sinérgica dessas informações geospaciais.

Pode-se afirmar que a constatação demonstra a necessidade de uma melhor governança. Não queremos dizer que não esteja sendo realizado esforço contínuo para a melhoria desta significativa Infraestrutura, mas, entendemos, que o Governo Federal, deve investir mais no processo de governança.

Quais são os principais desafios enfrentados por instituições federais brasileiras na implementação e no compartilhamento de dados geoespaciais, e que oportunidades você identifica para superá-los?

Temos em todos os âmbitos das instituições federais, um problema de ordem cultural. Os produtores de dados sentem-se donos daquilo que produzem, e nas universidades estes problemas toma proporções ainda maiores, mesmo sabendo que os investimentos para a produção, decorrem de repasses do governo, provenientes de investimentos oriundos de impostos que são arredados de toda a população, portanto, os dados devem servir para esta população.

O Brasil, não pode permanecer isolado na procura de soluções, torna-se necessário buscar as iniciativas exitosas, por meio do compartilhamento de conhecimentos. Existe no Brasil um distanciamento muito grande entre INDE e a academia e da iniciativa privada, grande fonte de produção de dados geoespaciais. Outros países da América do Sul, como a Argentina, possui um representante de todos as instituições universitárias com acento junto a comissão da IDERA – Infraestrutura de Dados Espaciais da República da Argentina, elemento de aproximação entre esses dois seguimentos.

De que forma a Infraestrutura de Dados Espaciais pode melhorar a governança, a transparência e a eficácia das políticas públicas no Brasil?

O Professor Brainard Guy Peters da Graduate School of Public and International Affairs da Universidade de Pittsburgh, descreve o termo governança, com algo que passou a ser usado no âmbito do discurso acadêmico e em discussões ordinárias sobre a forma de como o setor público e outras instituições de como administrar suas relações com a sociedade. Brainard ainda esclarece que a raiz da palavra, nos remete a “direção”, ou seja, a governança define a forma de dirigir visando atingir objetivos coletivos, lembrando que a primeira etapa do processo, deve ser o estabelecimento de metas. Ele ainda destaca que a Governança ainda não é uma tarefa simples de se executar.

Com a introdução conceitual, tomamos a liberdade de citar Luiz Ugeda Sanches, no artigo: Políticas Públicas geoinformacionais: identificação da governança das infraestruturas de dados espaciais, onde o autor realiza uma ampla análise no texto mundial, abordando também a situação do Brasil. O texto merece ser lido e apreciado.

Nota-se que o país necessita de uma política cartográfica, basta analisarmos os percentuais de cartas sistemáticas nas escalas 1:50.000 e 1:25.000 existentes. As próprias cartas 1:100.000, não cobrem todo o território nacional. Alia-se ao fato a desatualização das referidas cartas que já somam mais de 40 anos em sua grande maioria.

Podemos ainda, criar uma nítida divisão de estados que possuem uma cartografia atualizada para atender atividades de planejamento, projetos urbanísticos e estudos de diversas ordens. Neste sentido encontramos: com mapeamentos completos de seus territórios, o Distrito Federal (1:1.000), o Rio de Janeiro e São Paulo. No Norte, Nordeste e alguns estados do Centro-Oeste e do Sul do país verifica-se uma acentuada necessidade de bases cartográficas.

Neste sentido, como atuar com políticas públicas sem conhecer o território? Sem uma noção clara do seu espaço, como analisar, identificar e propor adequações em razão das diferentes ocupações? Como fazer a governança das áreas rurais, sem uma cartografia de qualidade? 

Como afirmou o Prof. Brainard, governança é dirigir visando atingir objetivos coletivos, e o maior objetivo e a qualidade de vida da população que deve se basear em um planejamento adequado, e para tal, não podemos prescindir de um mapeamento atualizado e de qualidade.

Como a academia e a pesquisa podem contribuir para aprimorar a Infraestrutura de Dados Espaciais no Brasil, em parceria com o Setor Privado?

O primeiro ponto seria incluir conceitos de ética na produção de dados geoespaciais, o que é um metadado e a sua importância, porque devemos compartilhar e, finalmente, onde devemos compartilhar os nossos dados. 

Outro passo importante, seria a criação de IDE Acadêmicas. Estas estruturas, além de otimizar o acesso interno aos dados produzidos, gerando uma significativa redução dos custos na aquisição de dados, que muitas vezes são estão presentes na própria instituição.  Esta iniciativa foi realizada em 2017, no evento GEONORDESTE, por iniciativa da Profa. Patrícia Brito da UFBA, com a criação de um grupo para instituir a IDEA – Infraestrutura de Dados Espaciais Acadêmica.

O isolamento das Universidades em relação ao Setor Público, também é um dos grandes entraves que ainda identificamos na área de geotecnologias. Temos atualmente no Brasil, grandes empresas que atuam diretamente na produção de dados, sem deixar de investir na inovação, buscando na academia a contribuição que, infelizmente se realiza de forma individualizada, sem uma formalização de acordos que possam trazer benefícios para ambas as partes. A universidade tem que deixar de enxergar o setor privado como um monstro devorador, buscando parcerias, pois estas se constituem como uma via de mão duplas.

Considerando sua experiência e o cenário atual, é possível traçar um futuro, ou ao menos, os próximos anos, da Infraestrutura de Dados Espaciais no Brasil, e quais passos considera essenciais para alcançá-lo?

Sou uma pessoa otimista, apesar de não ter os olhos fechados, deixando de observar e analisar as dificuldades que obstam certos processos no campo da disseminação de dados geoespaciais, principalmente nas Infraestruturas de Dados Espaciais. 

Entendo que temos ainda um longo caminho a trilhar, trabalhando no processo de conscientização que deve ter o início na formação de novos profissionais, e este passo deverá ser dados nas universidades no dia a dia do professor/aluno. 

Entretanto, não basta esta disposição, o empenho da academia, é necessário que o governo, como provedor de recursos, possa entender a importância da informação geográfica, como elementos vitais nos dias atuais estando presente em todos os processos de tomada de decisão.

* EDILSON DE SOUZA BIAS é Geógrafo, mestre em Geociências (UNESP – Rio Claro – 1998) Doutor em Geografia (UNESP– Rio Claro – 2003) e Pós-Doutorado em Infraestrutura de Dados Espaciais pela Universidad Ort Uruguay. Atuou como gerente do projeto de implantação do GEOCEB – Geoprocessamento para a Gestão das Redes de Energia Elétrica da CEB – Cia Energética de Brasília, e como consultor da Diretoria Técnica da CEB, no acompanhamento e implantação da integração de todos os sistemas técnicos da empresa. Foi durante 8 anos professor do Curso de Engenharia Ambiental da Universidade Católica de Brasília. Atualmente é professor do Instituto de Geociências – IGC da Universidade de Brasília – UnB. Possui experiências nas áreas de Geociências, com ênfase em Geoprocessamento, Cartografia, Normalização de Dados, Infraestrutura de Dados Espaciais e Classificação de Imagens Baseada em Objetos.

INDE em Xeque: o futuro incerto da Geoinformação no Brasil
Entrevista: Abimael Cereda Junior (MtB 91827/SP)
Fotografia e mini-cv: Enviados pelo entrevistado
Edição: Abimael Cereda Junior e Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches

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