Edmilson Volpi*
Um dos maiores casos de geográfica bizarra teve seu fim em 31 de julho de 2015, quando Índia e Bangladesh trocaram entre si 162 pedaços de terra, cada um deles do lado errado da fronteira. Os territórios ao longo da fronteira mais louca do mundo incluíam a “cereja do bolo” daquela estranha geografia: o único “contra-contra-enclave” do mundo: um pedaço da Índia cercado por território de Bangladesh, dentro de um enclave indiano dentro de Bangladesh.
Mas como esses enclaves surgiram? É o que conta uma reportagem do The Economist publicada dias antes do acordo.
Índia e Bangladesh compartilham uma fronteira de 4.100 km, desenhada apressadamente, em 1947, em torno de um dos lugares mais densamente povoados do planeta e que, devido aos intermináveis ziguezagues, constituem a quinta fronteira mais longa do mundo. As parcelas trocadas foram 111 enclaves de Bangladesh e 51 indianos agrupados em ambos os lados da fronteira de Bangladesh com o distrito de Cooch Behar, no estado indiano de Bengala Ocidental.
Na maioria dos mapas, os enclaves são invisíveis – e até mesmo no chão. Mas eles se tornaram um problema evidente para seus cerca de 50.000 habitantes com o surgimento dos controles de passaporte e visto. Índia e Bangladesh independentes – partes do Paquistão até 1971 – recusaram-se a permitir que o outro administrasse seus exclaves, deixando seus povos efetivamente apátridas.
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Diz a lenda que os enclaves foram formados como resultado de uma série de jogos de xadrez disputados entre dois marajás séculos atrás (os pedaços de terra eram usados como apostas). Já outros atribuíam a confusão um oficial britânico bêbado que teria derramado gostas de tinta no mapa ao desenhar a fronteira Índia-Paquistão, em 1947.
De acordo com Reece Jones, um geógrafo político, os enclaves foram cortados a partir de territórios maiores em função de tratados assinados em 1711 e 1713 entre o marajá de Cooch Behar e o imperador mogol em Delhi, pondo fim a uma série de guerras menores. Os exércitos mantinham o território que controlavam, os habitantes pagavam impostos aos seus respectivos governantes feudais e as pessoas moviam-se livremente por uma colcha de retalhos padronizada pela guerra feudal. Cinquenta anos depois, os esforços da Companhia Britânica das Índias Orientais para arrumar o confuso mapa falharam quando seus moradores optaram por ficar.
Foi a partição, a divisão da Índia e do Paquistão, que transformou os enclaves em terra de ninguém. O marajá hindu de Cooch Behar escolheu se juntar à Índia, em 1949, e trouxe consigo as possessões ex-mogol e ex-britânicas que herdou. Enclaves do outro lado da nova fronteira foram engolidos (mas não digeridos) pelo Paquistão Oriental, que mais tarde se tornou Bangladesh. Só em 1974 é que os dois países concordaram, em primeiro lugar, em reparar esta zona fronteiriça de loucos. A Índia aceitou renunciar à compensação por uma perda líquida de território que é de aproximadamente metade do tamanho da ilha de Hong Kong. Mas governos fracos e o nacionalismo frustraram o progresso indiano. Em maio de 2015, 41 anos mais tarde, o seu parlamento aprovou finalmente uma emenda constitucional necessária para ceder terras a Bangladesh e resolver a anomalia.
A eliminação dos enclaves teve três efeitos principais. O primeiro foi sentido principalmente pelos residentes, que agora podem escolher a qual país aderir, adquirindo benefícios de cidadania no processo. Isso permitiu que Índia e Bangladesh se concentrassem em assuntos mais importantes. O segundo foi global. Ao desaparecerem das terras fronteiriças de Bengala, o número de enclaves no mundo teve uma grande queda. Desde 2015, existem 49 manchas extraterritoriais no planeta, principalmente na Europa Ocidental e na periferia da antiga União Soviética.
Leia aqui o artigo original e a tradução no Curiosidades Cartográficas.
* Edmilson M. Volpi é engenheiro cartógrafo e editor da página Curiosidades Cartográficas no Facebook e Instagram