O Estatuto da Cidade, que comemorou 20 anos em 2021, tem DNA que remonta ao Anteprojeto da Lei de Desenvolvimento Urbano de 1976 divulgado no Estadão em 1977 — 54 anos atrás. O Anteprojeto foi tema de acirrados debates, recebeu críticas de todos os lados e, com alterações, foi enviado, em 1983, ao Poder Legislativo, onde transformou-se no PL nº 775/1983 — cujas diretrizes, tópicos e vários instrumentos jurídicos foram reproduzidos no Estatuto da Cidade de 2001.
A elaboração do Anteprojeto de 1976, avô do Estatuto da Cidade, começou em 1974 por iniciativa da Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU). Como comissão interministerial que contava com especialistas de notório saber, como Hely Lopes Meirelles e Eurico Andrade de Azevedo, a CNPU dispunha de uma Secretaria Executiva (SE) para exercer funções de governança e coordenar politicas urbanas federais e metropolitanas, às quais foi acrescida a tarefa de elaborar marcos jurídicos para o parcelamento do solo urbano e para o ordenamento jurídico da questão urbana.
Isso porque, a partir do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), como bem lembra Claudia Dutra, coordenadora jurídica da SE / CNPU, “havia uma clara estratégia de desenvolvimento territorial e urbano para a qual a atualização da legislação urbanística era peça fundamental.“ Da decisão do Conselho resultaram a Lei 6.766/83 (Parcelamento do Solo Urbano) e Anteprojeto enviado à Presidência da República em meados de 1976 e divulgado em 1977 como “instrumento para o desenvolvimento”.
A publicação do Anteprojeto / 76 pelo Estadão gerou intenso debate. O texto foi rejeitado por políticos, pelo setor imobiliário e pela construção civil, assim como por ideólogos de esquerda, urbanistas, arquitetos e entidades de classe. Direita e esquerda uniram-se contra o Anteprojeto. Para alguns porque promoveria o socialismo no país; para outros porque, elaborado no seio do governo militar, iria atender aos interesses ditatoriais e às forças imperialistas.
Ainda assim, houve espaço para debates produtivos com grupos empresariais, acadêmicos e técnicos que sabiam da importância de um ordenamento jurídico mínimo para a urbanização brasileira. Contribuições que surgiam eram avaliadas na SE/CNPU e na Comissão e permitiam aprimorar um Anteprojeto cujo conteúdo começara a tomar forma durante as inúmeras reuniões regionais realizadas com prefeitos, políticos, empresários e acadêmicos (1975). Depois, mediante contrato, via IPEA, de juristas e especialistas profissionais qualificados foram elaborados os documentos que, depois de avaliados e debatidos com consultores e técnicos do governo federal, foram consolidados, na Páscoa de 1976, em Anteprojeto para lei nacional de desenvolvimento urbano (LNDU). Os trabalhos eram coordenados por Hely Meirelles e Eurico Azevedo e a minuta preliminar contou, segundo Hely, com a orientação técnica de Jorge Guilherme Francisconi. Surgia, assim, o texto que, depois de debatido, alterado e aprovado pelos membros da CNPU, resultou no Anteprojeto / 76. O avô do Estatuto da Cidade.
A partir de 1978, o debate sobre a LDU perde força devido às reações contrárias de setores empresariais e grupos conservadores, e de críticas de intelectuais e acadêmicos de esquerda. Indo além, empresários cariocas patrocinaram uma minuta para Lei de Desenvolvimento Urbano que correspondesse aos seus interesses negociais. O anteprojeto carioca foi entregue ao Presidente Geisel e ao Ministro Reis Velloso, foi avaliado na CNPU, debatido, item por item, com Reis Velloso e integralmente rejeitado. Um procedimento que durou vários meses, que desgastou o Anteprojeto / 76 e que levou o executivo federal a concentrar seus esforços no Projeto de Lei de Parcelamento do Solo Urbano, que era combatido por grupos de interesse no âmbito do Poder Legislativo.
Em 1979, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) sucedeu à CNPU e ali o Anteprojeto / 76 sofreu novas alterações e adequações, até chegar ao texto que foi enviado ao Poder Legislativo e transformou-se no PL 775/83. Uma década mais tarde, o texto foi retirado pelo Poder Executivo (1995) e deu espaço ao Estatuto da Cidade (EC), projeto de lei que o Senador Pompeu de Souza introduziu em 1989 e que Fernando Henrique Cardoso sancionou em 2001.
O projeto de lei (PL) do Estatuto, que difere bastante do texto final, se deveu ao esforço de Roberto Bassul, consultor do Senado Federal com forte atuação em entidades sindicais e profissionais da arquitetura e urbanismo e muito ligado ao Senador. Com o apoio de membros do IAB, do governo federal e de consultores ligados ao Movimento Nacional da Reforma Urbana (MNRU), Bassul coordenou este projeto de lei baseado no principio do “direito à cidade,” no municipalismo e no participativismo – sem integração de saberes ou de níveis de governo. Tal como entendia o MNRU. Inúmeros itens do PL 775 / 83 foram replicados nesse projeto de lei, em especial quanto às diretrizes que constam no artigo 2º do EC e nos diversos instrumentos jurídicos a serem utilizados. Como descrito por Victor Carvalho Pinto em sua conferência no Seminário sobre “20 anos do Estatuto da Cidade”, na OAB RS (veja no YouTube).
Ou seja, mesmo sem dispor de profundas análises comparativas, constata-se que o DNA do Anteprojeto / 76 está presente no PL 775 / 83 e no Estatuto da Cidade.
O PL 775 / 83 comparecendo na paternidade, o Anteprojeto / 76 como avô.
Jorge Francisconi é arquiteto pela FAU/UFRGS, Master in Regional Planning – MRP e PhD em Ciências Sociais pela Maxwell School of Public Administration and Citizenship da Syracuse University, com ênfase em Economia Urbana, Planejamento Regional e Regiões Metropolitanas.