Muitas vezes incompreendida, com seus misteriosos marcos espalhados pelo território, a Geodésia é uma ciência cada vez mais presente em inúmeras ferramentas de geolocalização usadas no dia a dia com nossos smartphones conectados por GPS. Além disso, ela é também a base para diversas atividades, desde o saneamento básico e o fornecimento de água até a agricultura de precisão, como pontua o gerente de Planejamento da Coordenação de Geodésia e Cartografia da Diretoria de Geociências do IBGE, Jorge Kwasinski. Em entrevista ao portal Geocracia, ele ressalta que a Geodésia é uma infraestrutura que fornece tecnologia de posicionamento geográfico preciso para setores como construção civil, defesa, mercado financeiro e agronegócio: “E, como dizia Teixeira de Freitas, ela retrata o Brasil como realmente o é”.
A geodésia traz consigo diversos mitos, despertando imaginações e criatividades. Além dos devaneios do terraplanismo e das lendas da marcação de potes de ouro escondidos, no que consiste essa ciência? Qual sua real importância para o desenvolvimento do Brasil?
Quando falamos a respeito do termo “Geodésia”, estamos nos referindo a uma ciência do campo da matemática aplicada que tem como objetivo estudar e determinar a forma, dimensões, orientação, rotação e campo da gravidade do planeta Terra, bem como as suas variações ao longo do tempo. A geodésia dá o suporte para o melhor conhecimento do planeta e as interações entre os seus processos. Ela é também o suporte para diversas atividades da nossa sociedade, como por exemplo: fornecimento de água, delimitação de propriedades, agricultura de precisão, entre outras. Portanto, a sua importância está na sua presença em muitas atividades de uma sociedade sustentável.
Além da pegada sustentável, também existe um vibrante mercado consumidor de tecnologias de posicionamento geográfico preciso, em diversos segmentos: construção civil, defesa, mercado financeiro e agronegócio. Um levantamento conduzido pela RTI Internacional estima em US$ 1,4 trilhões os benefícios econômicos diretos gerados pela inserção da tecnologia de posicionamento por satélites (Global Navigation Satellite Positioning Systems (GNSS) em aplicações privadas, desde a década de 1980 até 2019. Complementando essa percepção, o ranking de preparo das nações em geoinformação, que vem sendo elaborado pela GEOBUIZ, avaliou o potencial de geração de valor econômico das tecnologias de posicionamento geodésico para o mercado geoespacial em aproximadamente 60% do montante de riquezas projetado para o setor durante o triênio 2018 -2020, superando o volume de US$ 200 bilhões ao ano (!!!).
Das questões levantadas, fica clara a importância da Geodésia para o País, não somente como ferramenta indutora do desenvolvimento econômico, mas também pelo aspecto da sustentabilidade, uma vez que essa ciência possui aptidão natural para medir com precisão os fenômenos ambientais e climáticos que ocorrem na superfície de nosso planeta.
Qual é o atual estágio da infraestrutura geodésica do país?
Aqui cabe um parêntese para o leitor sobre o que estamos querendo falar quando citamos o termo “infraestrutura geodésica”. Segundo definição estabelecida pelo subcomitê de Geodésia dos peritos de gestão de geoinformação da ONU (UN-GGIM, SCoG), esse conceito se refere ao conjunto de instrumentos, tecnologias, dados, repositórios de dados, análises, recursos humanos, produtos e serviços requeridos para observar e modelar a dinâmica de movimento do planeta Terra.
No contexto nacional, o Brasil, tem como “embaixador” na coordenação nacional do tema, o IBGE. Há cerca de oito décadas, a Fundação vem construindo e mantendo o hoje chamado Sistema Geodésico Brasileiro (SGB). Do ponto de vista físico dessa infraestrutura, a instituição vem implementando, desde 1940, uma rede (as redes geodésicas compõem o SGB) de pontos de referência que já conta com aproximadamente 110.000 estações, subdividas nas seguintes vertentes: planialtimétrica, que fornece coordenadas tridimensionais relacionadas a uma figura geométrica de representação do Brasil (elipsóide – referidas ao SIRGAS2000, época 2000.4); altimétrica, formada por estações com altitudes de alta precisão; e gravimétrica, com estações com valores precisos da aceleração da gravidade. Sabe-se que hoje, quase 50% dessas estações materializadas não estão mais acessíveis à comunidade usuária devido a remoções não autorizadas, muitas vezes motivadas por desconhecimento da sociedade sobre a utilidade desses monumentos públicos.
Durante esse período, houve um esforço constante e louvável da instituição para manter-se no estado da arte do Campo da Geodésia, que vem evoluindo de maneira significativa. Isso se traduz em algumas realizações da Fundação como, por exemplo, o pioneirismo na montagem de uma infraestrutura moderna de geosserviços digitais na América Latina: o Banco de Dados Geodésicos (BDG), a Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo (RBMC) e o Serviço de Posicionamento por Ponto Preciso (PPP), considerados serviços essenciais e de grande procura pelos usuários, que acumulam milhões de downloads e acessos anuais.
Pode-se dizer que a Geodésia brasileira tem enfrentado os mesmos dilemas tecnológicos de grande parte de suas organizações coirmãs no globo, no tocante aos desafios de buscar soluções alternativas para atualização da componente “altitude”, via estudos de viabilidade de combinação de dados de satélites globais altimétricos e gravimétricos, aerogravimetria, levantamentos gravimétricos terrestres relativos e absolutos e dados de marégrafos. Essas novas técnicas poderiam substituir, em um futuro não tão distante, levantamentos convencionais custosos como o nivelamento geométrico de alta precisão e a necessidade de se manter a “saúde” de uma rede de marcos geodésicos da ordem de mais de 70.000 pontos. Uma prova dessa evolução, foi o lançamento recente do novo serviço para conversão de altitudes hgeoHNOR2020 (https://geocracia.com/ibge-lanca-aplicativo-mais-rapido-e-preciso-na-conversao-de-altitudes/, pelo IBGE, em agosto desse ano, em que a nova filosofia de “altitudes com significado físico”, ou seja, incorporando informações da aceleração da gravidade local, já tem sido colocada em prática.
Como os demais países têm lidado com a governança da infraestrutura geodésica? É possível apontar alguns modelos de referência?
É importante esclarecer qual o contexto do conceito de “governança” abordado, pois ele tem sido utilizado com múltiplas significações e empregos hoje em dia. Como estamos num contexto público, usaremos a definição operacionalizada pelo Tribunal de Contas de União (TCU), em seu Manual de Governança, como sinônimo de um “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”.
No âmbito global, o Subcomitê de Geodésia da UN-GGIM tem dedicado uma série de publicações e objetivos devotados ao fortalecimento e difusão de boas práticas de governança em infraestrutura geodésica com foco na obtenção de uma rede global voltada para a sustentabilidade (GGRF), em estreita vinculação ao atingimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Entre suas principais metas, estão a formação de um fórum mundial para fomento de colaboração e parcerias entre as nações, o fortalecimento de lideranças e visão estratégica e a elaboração de um guia ou road map.
De uma forma geral, tem se verificado que a capacidade de coordenação intragovernamental e a habilidade para promover um sistema o mais colaborativo possível e fomentador de parcerias têm se tornado, ao menos em tese, importantes para o fomento dos mercados de geoinformação e para obtenção de melhores resultados. Uma prova disso são as avaliações de rankings independentes, como o índice de preparo geoespacial das nações, o CGRI Index, promovido pela GEOBUIZ, que se alinha às dimensões estratégicas sugeridas pela ONU.
Os desenhos institucionais adotados para isso são múltiplos. Temos o modelo de agência reguladora específica de Geodésia na Alemanha; estatais dependentes (empresas públicas), como ocorre no Reino Unido, Israel e Holanda; administração civil-militar (Bélgica, Grécia, Suíça); modelos bastantes descentralizados, como Canadá e Austrália (responsabilidades locais e regionais, Estados e Municípios), e os mistos, que combinam coordenação central, regional e local (EUA). O modelo estadunidense, conforme os resultados do CGRI Index 2020, poderia ser um “benchmarking” internacional. Em termos de políticas públicas geográficas modernas, há que se dar destaque também ao One Map Policy indonésio e à sua moderna agência de regulação do setor.
Sendo assim, é possível apontar com razoável certeza, com base em achados recentes, que uma governança de infraestrutura geodésica mais efetiva não estaria correlacionada positivamente com governos que trabalhem “sozinhos” ou de maneira excessivamente vertical em sua gestão, não importando muito se seriam fundações, agências reguladoras, empresas ou membros da administração direta (entidades diretamente vinculadas aos ministérios ou a autoridade máxima do poder executivo).
Como manter a gigantesca infraestrutura geodésica brasileira atualizada e relevante do ponto de vista científico? Quais transformações o IBGE precisaria passar para alcançar este objetivo?
Acredito que seja estratégico para manter a nossa relevância do ponto de vista científico a busca por atualização e excelência técnica. Podemos citar como exemplos a inserção internacional ativa que o instituto mantém com organismos científicos internacionais, como a representação brasileira na UGGI, no Subcomitê de Geodésia da UN-GGIM, e atualmente exercendo a presidência do SIRGAS, posições de destaque, hoje ocupadas por ibegeanos da área de geodésia da Diretoria de Geociências do IBGE.
Nossa visão de futuro, que é e realmente precisa ser ambiciosa, está baseada na necessidade de acompanhar o movimento de transformação digital dos serviços públicos com foco específico em manter-se na crista da onda dos avanços tecnológicos dos serviços de posicionamento GNSS em tempo real, bem como prospectar inovações metodológicas em antigos processos de trabalho, como a obtenção de altitudes e a manutenção física dos marcos geodésicos (ainda que eventualmente restrita a um subconjunto reduzido das atuais redes). Ademais, temos o desafio de como incluir, de maneira eficiente, o potencial colaborativo do mercado e do cidadão comum em nossos fluxos produtivos.
Na sua opinião, qual seria a governança ideal para lidar com um território tão vasto e em uma sociedade tão dinâmica?
Analisando as características sociais, econômicas e territoriais de um País do porte do nosso, temos, de primeiro plano, a tendência lógica e racional em dizer que uma governança ideal para promover qualquer política pública de geoinformação seria a repartição de responsabilidades, de forma colaborativa, e baseada no interesse local, uma escolha que, ademais, também seria de caráter econômico, ao primar pela eficiência, evitando o efeito de sobreposição, desperdício de recursos públicos e duplicação de dados geoespaciais.
Por outro lado, também sabemos que temos dificuldades estruturais, sobretudo em capacidades institucionais, especialmente em nossos municípios, que não internalizariam conhecimentos tão especializados do “dia para a noite”. Também não podemos deixar de notar o caráter estratégico de se ter um núcleo técnico estatal responsável pela coordenação dessas políticas, uma vez que se relacionam a aspectos de infraestrutura relacionados a soberania nacional. Não menos importante, há de se pensar no fomento ao desenvolvimento do mercado da geoinformação no País. A necessidade de participação social, coordenação intragovernamental, incluindo núcleo central de especialistas, nos coloca, a meu ver, num esquema ideal potencialmente “híbrido”, que combinaria liderança estatal, colaboração ampla da sociedade e maior protagonismo do mercado.
Apesar das críticas na comunidade acadêmica em geral ao modelo de governança vigente no Brasil, ou até mesmo pela ausência dele em certos aspectos, vejo que seria possível realizar uma “manutenção na estrutura” sem necessidade de derrubá-la por completo. Explico. Vimos anteriormente que, salvo melhor juízo, capacidades de coordenação e articulação com a sociedade podem ser capitais para prover impactos regulatórios positivos, não parecendo importar muito o desenho da instituição ou organizações que irão assumir a liderança desse importante processo. Finalizando, me despeço parafraseando o ilustre fundador do IBGE e homem público de destaque, Teixeira de Freitas: “Faça o Brasil a geodésia que deve ter, e a geodésia retratará o Brasil como realmente o é”.