José Donizete Cazzolato: Estado de Tapajós, o que aprendemos em 500 anos?

Tapajós
Proposta atual de criação do Estado do Tapajós – mapa do autor (bases cartográficas CEM -Centro de Estudos da Metrópole)

A história do Brasil é uma sucessão de fragmentações territoriais. Um dos primeiros atos da Coroa Portuguesa, na apropriação da nova colônia, foi sua divisão em Capitanias. Estas, ao longo dos dois séculos seguintes, expandiram-se no sentido geral Oeste, fundiram-se ou foram divididas para a criação de novas unidades. Paralelamente, no nível local da administração, os termos das vilas também foram sendo subdivididos à medida que a ocupação avançava por novas terras agrícolas, pastoris ou de mineração.

Como um todo, esse processo de contínuo ajuste territorial pode ser considerado natural, decorrente da expansão e do incremento demográfico nas diferentes porções do território nacional. Nem todas as alterações, porém, resultaram de estudos mais criteriosos ou consensos. Ao longo de cinco séculos de história, motivações administrativas e políticas somaram-se ou alternaram-se, de forma que o desenho atual das Unidades da Federação mantém claras desproporções dimensionais.

Cinquenta anos atrás, porém, antes da divisão de Mato Grosso e Goiás, esses contrastes eram ainda maiores, o que leva a concluir que há tendência ao maior equilíbrio entre as Unidades da Federação, ao aprimoramento da trama federativa.

As mais recentes alterações político-administrativas na instância regional foram determinadas pela Constituição de 1988, que criou Tocantins e elevou os territórios federais do Amapá e de Roraima à condição de Estado. Para as alterações que se seguissem, contudo, a nova Carta reformulou o rito jurídico, incluindo a consulta plebiscitária à população diretamente interessada.

A primeira experiência de emancipação com a nova sistemática deu-se em 2011, quando dois projetos foram levados a plebiscito propondo a fragmentação do Pará para a criação de Carajás e Tapajós. Ambos foram rejeitados, e agora, dez anos depois, um novo projeto tramita no Congresso objetivando a criação de Tapajós. [1]

Tudo indica que se repetirá o velho roteiro: os emancipacionistas defendendo a necessidade de desenvolvimento numa região abandonada pela gestão pública e os que se opõem alegando a incapacidade de o novo estado manter-se economicamente, enquanto paira sobre o processo o permanente apetite da classe política por espaço de poder e cargos. No entanto, cada caso tem sua peculiaridade, e vale a pena, antes de analisar o projeto atual, lembrar alguns pontos das experiências mais recentes, inclusive porque é a segunda tentativa, em dez anos, de se criar Tapajós.

Mato Grosso do Sul e Tocantins

Ambos são claros exemplos de êxito, mesmo sendo originários de processos legais pouco ortodoxos ou mesmo condenáveis. A criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, deu-se por iniciativa do Executivo, quando o país vivia sob regime político de exceção (governo Geisel), e a criação de Tocantins teve um trâmite diferenciado, em que se destacou um dos relatores de assuntos territoriais da Assembleia Constituinte de 1988 (deputado Siqueira Campos), livrando-a do plebiscito então instituído pela nova Carta.

Sob todos os pontos de vista, o acerto na instituição do Mato Grosso do Sul é inquestionável, inclusive porque se deu exatamente em conformidade com a geografia do então Mato Grosso, cujo território se organizava a partir de dois polos urbanos distantes e equivalentes – Cuiabá e Campo Grande. Tocantins também é considerado um sucesso, política e economicamente. Diferentemente de MS, no entanto, o antigo Norte de Goiás contrastava com a densidade demográfica da porção Sul, e sua transformação em unidade administrativa autônoma foi preponderante para alavancar o desenvolvimento local.

As quatro UF decorrentes – MT, MS, GO e TO, ajustam-se ao padrão geográfico apresentado pelo conjunto das demais unidades, e os vazios de governo que se observavam entre Cuiabá e São Paulo e entre Goiânia e Belém foram preenchidos. Aprimorou-se, portanto, a trama federativa.

A divisão do Pará

Em dezembro de 2011, a população do Pará foi chamada a votar, respondendo com sim ou não à criação de Carajás e Tapajós. Os dois projetos, apresentados separadamente no Congresso, propunham a fragmentação do segundo maior estado brasileiro, resultando em três unidades de proporções similares às do conjunto das demais UF. Da mesma forma que a divisão de Goiás e Mato Grosso, esta nova compartimentação resultaria em vantagens administrativas e aperfeiçoamento do desenho federativo.

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A geografia do Pará mostra uma porção bastante adensada no Nordeste, onde fica a capital Belém, e duas de menor densidade, polarizadas por Santarém – no Oeste, e Marabá – no Sul/Sudeste. Os limites propostos para os dois novos estados recaíam exatamente nas interfaces entre essas três regiões geoeconômicas, onde diferentes identidades geográficas são bastante perceptíveis.

Desde que foi marcado o plebiscito, em maio de 2011, houve intensa campanha por todo o Estado, configurando um clima de embate. Em Carajás e em Tapajós espalhou-se inegável entusiasmo com as perspectivas da sonhada autonomia, enquanto em Belém acirraram-se as palavras de ordem negacionistas, com forte apelo emocional.

Para ser aprovado, cada um dos Estados pretendentes deveria receber maioria simples dos votos, computados em todo o Estado do Pará. Considerando-se que a região de Belém totalizava 64% da população paraense (Censo 2010), conclui-se que a sistemática de contagem dos votos de certa forma definiu o desfecho do plebiscito, como de fato ocorreu. Em valores quase idênticos, ambos foram rejeitados, à proporção de 66% não e 33% sim.

Nas duas porções pretendentes à emancipação, porém, o sim impôs fragorosa derrota ao não, com percentuais de 87% em Tapajós e 92% em Carajás, como se pode ver nas figuras a seguir (resultados por município, em faixas percentuais, e resultados por região). Os dois primeiros mapas mostram que a população votou de forma bastante similar, na aprovação ou rejeição de ambos. Pode-se perceber também que o plebiscito teria reforçado os sentimentos identitários – poucos municípios votaram de forma dividida.

O grande município em amarelo (30 a 70% de votos sim) é Altamira – mapa: elaboração do autor (bases cartográficas CEM -Centro de Estudos da Metrópole)
Abusando da linguagem futebolística de algum tempo atrás, pode-se concluir que Carajás e Tapajós ganharam mas não levaram – mapa: elaboração do autor (bases cartográficas CEM -Centro de Estudos da Metrópole)

O projeto atual de Tapajós

Em linhas gerais, parece repetir a proposta de 2011: a mesma denominação, abrangendo a porção ocidental do Pará e com capital em Santarém. No entanto, os autores do projeto priorizaram a questão política, ou seja, o trâmite legislativo, em detrimento da consistência geográfica. Receosos de que alguns municípios repitam os votos de dez anos atrás, com índices de rejeição superiores aos demais municípios do Oeste, decidiram por excluí-los: Altamira, Porto de Moz, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu. Esta ação descaracterizou a coesão regional e prejudicou a conformação territorial que o projeto de 2011 apresentava.

Aparentemente, não haveria razões de ordem estrutural para justificar o menor entusiasmo de Altamira com o ideal separatista, a começar pela sua localização: está a 400 km rodoviários de Santarém e a 830 de Belém. Certamente conjunturas do momento teriam levado seus eleitores, em 2011, a dúvidas quanto às vantagens da emancipação.

A população dos quatro municípios ora excluídos, totalizava 160 mil (Censo 2010), valor significativo para os padrões amazônicos. Altamira somava 100 mil, que hoje a estatística do IBGE eleva para 117 mil, valor aparentemente conservador quando se observa as imagens aéreas de sua sede municipal e entorno. A cidade é o segundo polo urbano do Oeste paraense, estendendo sua área de influência para os municípios ao longo da rodovia Transamazônica (BR 230) e para o Norte, até a calha do Amazonas. [2]

A manter-se o atual recorte para o projeto, Tapajós agregaria municípios operando sob influência de um polo regional do estado vizinho, condição claramente desfavorável para a administração e para a economia do novo estado, assim como para o cotidiano dessa população.

O segundo aspecto demandando a reinclusão de Altamira é a exacerbada extensão e a peculiaridade de sua conformação municipal. Com quase 90% de seu território ocupado por Terras Indígenas e Unidades de Conservação, estende-se da BR 230, onde está a sede, até o limite PA/MT, onde é cortado pela BR 163. Neste trecho, a 900 km rodoviários da sede municipal, estão seus dois distritos, Castelo dos Sonhos e Cachoeira da Serra.

A BR 163 conecta o Norte de Mato Grosso à BR 230, nas proximidades de Itaituba, e grande parte de seu movimento é de carretas transportando grãos para serem exportados pelo porto de Mirititiba (de frente para Itaituba, na margem direita do rio Tapajós). Esse fluxo, que tende a reforçar-se com a ferrovia a ser implantada junto ao eixo rodoviário, levará, em curto prazo, à emancipação de diversos povoados ao longo da rodovia. Entre esses núcleos pioneiros, estão as duas sedes distritais de Altamira, que certamente formarão um município único com sede em Castelo dos Sonhos (o núcleo maior).

Se o novo estado de Tapajós for criado sem o município de Altamira, o grande eixo de conexão TA/MT terá um pequeno trecho (109 km) pertencente a outro estado – Pará ou Carajás. Este contra-senso territorial implicará grandes prejuízos para a administração da rodovia (e da ferrovia), para a gestão estadual como um todo, e, principalmente, para os moradores de Castelo dos Sonhos, isolados de seu Estado.

O mapa da esquerda sintetiza a conformação territorial do Estado de Tapajós conforme projeto levado a plebiscito em 2011, e o da direita conforme o projeto de 2021. As cidades estão classificadas pela população urbana, e os limites municipais estão em marrom; em amarelo forte, o município de Altamira, e em amarelo claro os municípios de sua influência imediata; em branco as rodovias federais e os pontos numerados são as sedes distritais de Castelo dos Sonhos (1) e Cachoeira da Serra (2) – mapa: elaboração do autor (bases cartográficas CEM -Centro de Estudos da Metrópole).

O atual projeto de criação do Estado de Tapajós, portanto, falha gravemente ao excluir municípios presentes na proposta de 2011. Além disso, poucas chances terá de ser aprovado em plebiscito, por conta do percentual exigido de maioria simples computando-se os votos de todo o estado, como ocorreu dez anos atrás.

Algumas conclusões

A criação de MS e a de TO partiram de desenhos territoriais geograficamente  consistentes e efetivaram-se por meio de processos institucionais hoje discutíveis. A tentativa de divisão do Pará também se baseava em compartimentação geográfica e federativamente adequada, porém esbarrou em detalhe técnico do processo que se considerou avançado, por incluir consulta à população.

Nos três casos, a qualidade dos recortes territoriais deu-se por acaso. Mas continuar confiando na sorte para as questões emancipatórias, como parece ter sido nossa opção como sociedade, parece pouco razoável para o país. Há que se consensuar os pontos essenciais de uma política territorial efetiva, estabelecendo padrões técnicos e etapas de consulta a instituições com notórios conhecimentos geográficos, associações, universidades etc, antes do projeto ser apresentado nas casas legislativas, ampliando as possibilidades de acerto.

Questões da mais alta importância federativa, como é o caso das emancipações político-administrativas, não poderiam ficar restritas a gabinetes parlamentares.

Por outro lado, a consulta plebiscitária a todos os eleitores da unidade a ser fragmentada revela-se, na prática, um mecanismo de eficácia duvidosa, uma espécie de freio. Regiões distantes e com diferenças históricas ou culturais permanecem com os direitos à autonomia político-administrativa tolhidos, dependentes do poder de voto que a região da Capital detém, numa relação similar ao colonialismo e na contra-mão dos caminhos que o Brasil trilhou ao longo dos cinco séculos de nossa história.

Assegurando-se a solidez geográfica do recorte territorial, das dimensões compatíveis com o padrão dos demais entes federados, que garantirão a melhor gestão em ambas as porções – a que se emancipa e a que permanece –, o plebiscito pode restringir-se à área do novo estado ou município, porém com percentual de aprovação igual ou maior à maioria qualificada, algo em torno de 70%, talvez, somado à menor abstenção cabível.

[1] G1 Santarém e Região – 18/11/2021 – Geovane Brito

[2] IBGE: Regiões Geográficas e Divisão Urbano-Regional

[3] Na pesquisa para o livro “Novos Estados e a divisão territorial do Brasil – uma visão geográfica” (Ofitexto, São Paulo, 2011), foram encontrados 30 projetos de novos estados apresentados no Congresso desde 1988 – a maioria não resiste a uma análise mais elementar, como, por exemplo, Alto Rio Negro, Marajó ou a recriação da Guanabara.

José Donizete Cazzolato – geógrafo. donizete@donizetegeografo.com.br

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