Quando empresários do setor de infraestrutura inconscientemente postergam ações importantes de planejamento de seus empreendimentos para fases meramente executivas, como a de elaboração dos estudos ambientais, em total descasamento com a realidade regulatória brasileira, assumem um grande risco de participar de tragédias como a da aeronave que decolou no dia 5 de novembro de Goiânia com destino a Caratinga e caiu matando a cantora Marília Mendonça, sua equipe, piloto e co-piloto.
As autoridades ainda apuram as causas do acidente, mas já se sabe que a aeronave bateu em uma linha de distribuição de alta tensão durante a aproximação para o pouso, a cerca de 4 km da cabeceira da pista do aeródromo de Ubaporanga, em Minas Gerais. Não se pode afirmar que a concessionária de serviço público tenha concorrido de alguma forma para o acidente, mas podemos daqui tirar algumas lições sobre Geodireito.
É suposto que o ato de planejar exija mais do empreendedor do que desenhar uma linha entre os pontos “A” e “B” ou um polígono da área “X”, e muito mais que sustentar tais desenhos por meio de cálculos de engenharia. É preciso ter visão institucional do projeto, prevendo-se corretamente quais as interlocuções necessárias para viabilizá-lo, adicionando-as concretamente ao seu cronograma físico-financeiro.
Planejar é o ato de olhar para o território – e também para o futuro – predizendo as causas físicas e as consequências jurídicas atreladas ao empreendimento que, tendencialmente, perdurará por gerações e acompanhará o desenvolvimento de toda uma geografia física e humana. Portanto, ao olhar para o território onde se empreende, é preciso entender como este se relaciona com as diversas camadas da sociedade, nas mais variadas esferas de poder, em diferentes estruturas regulatórias, o que chamamos de visão 360 graus.
Planejar é, também, ato geojurídico por excelência. É trazer do futuro, no tempo presente, a forma como o empreendimento se relaciona com a sociedade em termos de prazos e de custos. É antever, com metodologia aplicada à realidade, os problemas a enfrentar, abrindo-se um leque de possíveis soluções que se encaixarão dentro das perspectivas e necessidades do empreendedor. Por assim dizer, o planejamento não se posterga a etapas futuras.
No ato de planejar há, pois, verdadeira tomada de decisão consciente e orientadora para as demais fases de implantação do empreendimento, como, por exemplo, a elaboração de estudos e programas geridos no âmbito do procedimento de licenciamento ambiental.
O planejamento é a alma das empresas de infraestruturas e, como tal, não pode ver reduzido o diagnóstico e nem proteladas suas ações. É de onde devem emergir comandos claros que, quando bem executados nas demais fases, resultarão em cumprimento de prazos, otimização de custos e segurança jurídica.
Mas, há outras formas de se obter dados concretos anteriormente às demais fases, como a de elaboração de estudos ambientais, evitando-se gastos antecipados com levantamentos de campo? É evidente que sim, ainda mais em tempos atuais, quando as geotecnologias avançam no sentido de serem tão importantes quanto a energia elétrica fora para o século XX, permitindo que seja aportado conhecimento jurídico para antecipar inúmeras questões que podem ocorrer cerca de 20, 30 anos depois.
Desta forma e voltando ao infeliz caso de Caratinga, antes do resultado trágico, uma torre no meio do caminho significa saber “onde”, “como” e “para quem”. Ou seja, para além de determinar sua localização, é saber como e quem deve licenciá-la. E estas são perguntas que devem ser feitas, atempadamente, ainda durante o planejamento de todo e qualquer empreendimento.
Por mais que haja sempre a convicção de que um aeródromo respeitará integralmente as normas do Comando da Aeronáutica (COMAER) e de que a linha de distribuição seguirá rigorosamente as regras da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), é necessário mais do que supor que os projetos honram com as normas construtivas. É imprescindível a realização do ato jurídico perfeito, qual seja, a manifestação oficial da autoridade competente a declarar assertivamente quanto àquelas instalações.
Ao mesmo tempo, as culturas de entidades regulatórias distintas devem ser harmonizadas. Esse alinhamento, especialmente entre as entidades reguladoras e as empresas reguladas, é um trabalho artesanal e que demanda conhecimentos jurídicos ainda na fase do planejamento e, invariavelmente, caso a caso.
Ao final, pode ser que para este caso concreto as autoridades concluam que todo o trabalho foi impecavelmente desempenhado pelas empresas e pelo Poder Público, e que o erro foi causado pelo piloto, o fator humano. Mas isto não bane da nossa realidade os inúmeros exemplos de interferências regulatórias que concorrem entre si, principalmente no bioma amazônico, onde é possível encontrar subestações ou mesmo geradoras a diesel a menos de 300 metros das cabeceiras de aeródromos.
Deixemos aqui a mensagem de que já existem instrumentos geojurídicos utilizáveis ainda na fase de planejamento dos empreendimentos, atribuindo segurança jurídica perante a realidade regulatória brasileira. O país, as empresas e as autoridades têm de fazer a lição de casa, sob pena de virmos a vivenciar outras tragédias.
*Karine Sanches é advogada, doutoranda em Direito (Coimbra) e mestre em Direito (PUCPR). Sócia da Geodireito.
Fonte: Artigo publicado ontem (08), na Coluna de Fausto Macedo, no Estadão.