Em conjunto com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a Rede Cerrado, criou o aplicativo Tô no Mapa, para que povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares realizem o automapeamento de seus territórios. Uma das maiores defensoras da visibilização de comunidades tradicionais, a antropóloga Kátia Favilla é secretária executiva da Rede Cerrado, que reúne mais de 50 entidades da sociedade civil associadas representantes de diversas comunidades identificadas com a causa socioambiental do bioma. Segundo ela, para indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais, agricultores familiares e outras comunidades, o Tô no Mapa “pode significar um primeiro polígono dos seus territórios e a busca pelos direitos territoriais junto aos órgãos governamentais responsáveis”.
Como surgiu o Tô no Mapa e qual sua finalidade?
A questão da falta de dados oficiais sobre territórios de povos e comunidades tradicionais é uma dura realidade que esses segmentos buscam combater há muitos anos. A partir de ações de um projeto de mapeamento de comunidades invisibilizadas, executado em conjunto pelo ISPN e pelo IPAM e acompanhado de maneira muito próxima pela Rede Cerrado, houve uma discussão em Assembleia da Rede Cerrado sobre como poderia ser dada maior escala às ações realizadas por esse projeto e que identificaram mais de 3,5 vezes o número de comunidades em dados oficiais. O IPAM já reunia experiência com o desenvolvimento de um outro aplicativo voltado aos povos indígenas e mudanças climáticas. A ideia foi unir as três organizações em um esforço para desenvolver um aplicativo de celulares no qual as comunidades pudessem fazer o automapeamento de seus territórios e esses dados pudessem ajudar em processos internos de discussões, na busca futura por regularização territorial e na visibilização desses territórios em um mapa mais real sobre a sociodiversidade brasileira, especialmente no mundo rural, mas não limitada a este.
A cartografia colaborativa tem o grande papel de mostrar que, para além do direito de sermos geoinformados, temos, no âmbito do direito à informação presente em nossa Constituição, que ter condições de geoinformar. Como o Tô no Mapa cumpre essa função de universalizar a geoinformação colaborativa? Os metadados são disponibilizados para análise de terceiros?
A primeira contribuição do Tô no Mapa é com as comunidades que se automapeiam e, ao final do cadastramento, geram um relatório com o mapa de suas comunidades e as informações que aportaram no aplicativo, como usos e conflitos, por exemplo. Há dados que são confidenciais e não serão partilhados com nenhuma outra organização para além das gestoras do aplicativo (IPAM, ISPN e Rede Cerrado). Existe a possibilidade de acesso de dados para pesquisas e outros fins, desde que sejam cumpridas normativas de acesso à informação. E há informações que poderão ser publicizadas individualmente, desde que as comunidades façam essa opção ao se cadastrarem – existe uma chave específica no aplicativo para publicização ou não dos dados, e essa escolha é das comunidades.
A luta por direitos territoriais não reconhecidos passa, principalmente, pelo seu reconhecimento por meio da oficialidade do dado espacial. Existe uma estratégia contenciosa para que o Tô no Mapa sirva como perícia geográfica para convencimento judicial?
O aplicativo não significa oficialmente nenhuma etapa no processo de reconhecimento territorial. Entretanto, a intenção das organizações é que o aplicativo possa gerar, primeiro, uma explicitação de consciência comunitária dos limites territoriais, visto que muitas comunidades nunca tiveram a possibilidade de ter um mapa dos seus territórios, e o uso do Tô no Mapa permite que este mapa seja construído coletivamente, debatido internamente e gerado ao final um relatório com os polígonos desse território. É uma primeira foto desse território, repleta de discussão e construção coletiva.
Segundo: o aplicativo possibilita uma ligação com a Plataforma de Territórios Tradicionais do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais e Ministério Público Federal. Essa parceria tem a possibilidade de que a comunidade coloque seu mapa e informações para serem validados, fazendo parte desse grande esforço de mapeamento de povos e comunidades tradicionais e ganhando mais uma camada de visibilidade.
Terceiro: o Instituto Cerrados, parceiro na iniciativa Tô no Mapa, construiu uma cartilha para entendimento das etapas de reconhecimento territorial e quais órgãos oficiais devem ser buscados nesse processo.
Entendemos que é um processo longo até a finalização do reconhecimento territorial, mas acreditamos que o Tô no Mapa pode vir a significar para muitas comunidades um primeiro polígono dos seus territórios e a busca pelos direitos territoriais junto aos órgãos governamentais responsáveis.
A qualidade do dado espacial brasileiro disponibilizado pelas entidades públicas, em que pese o Decreto da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) ser muito bem redigido e trazer consigo todos os conceitos centrais, está sob uma governança pública mais frágil do que a de países subsaarianos, muitos dos quais já contam com agências regulando este nascente setor de infraestrutura. O IPAM, o ISPN e a Rede Cerrado têm alguma posição sobre como regulamentar o art. 21, XV, da Constituição Federal que obriga a União a desenvolver a Geografia e a Cartografia brasileira, disponibilizando metadados ao país?
Especificamente sobre o Tô no Mapa, e não como um posicionamento oficial de nenhuma dessas três organizações, entendemos e temos buscado parcerias que possibilitem que esse dado gerado pelas comunidades em um processo de automapeamento venha ser reconhecido por setores governamentais. Alguns importantes diálogos já foram iniciados e outros estão já em fase de execução, como a mencionada parceria com a Plataforma de Territórios Tradicionais/CNPCT/MPF.
O que indígenas, quilombolas e pequenos agricultores podem esperar de casos concretos que o Tô no Mapa já tenha para apresentar sobre seus benefícios?
O aplicativo ainda é muito recente e, como foi lançado em plena pandemia, tivemos e estamos tendo algumas restrições para sua divulgação e, em alguns casos, utilização, visto ser absolutamente primordial nesse momento garantir a biossegurança desses povos e comunidades.
Acabamos de lançar o primeiro relatório de povoamento do aplicativo. O benefício direto da sua utilização é a geração de relatório final com dados da comunidade e o mapa do território, como referi anteriormente. Para muitas delas esse é o primeiro mapa que visualizam de seus territórios.
O outro benefício que entendemos imediato para as comunidades é a decisão de incluir o território no aplicativo e o debate interno que esta decisão gera, visto ser necessária a inclusão de uma ata de reunião da comunidade concordando com a inclusão do território e com os dados que serão aportados.
A nossa intenção é que esses benefícios sejam ainda maiores, com as comunidades entendendo seus direitos territoriais, buscando processos de regularização fundiária e gerando maiores diálogos, tanto internamente, quanto com órgãos governamentais e parceiros da sociedade civil sobre os processos de regularização territorial e acesso às políticas públicas.