Legislação deve definir padrão de dados para haver interoperabilidade

interoperabilidade
Chefe da DSG, general Marcis Mendonça Jr. ressalta a importância da interoperabilidade de dados (arquivo pessoal).

“Se não houver uma legislação que defina exatamente o padrão dos dados, a probabilidade de não haver interoperabilidade é muito elevada, o que restringe severamente a aplicação dessa geoinformação já existente”. O alerta é feito por ninguém menos do que o general de Brigada Marcis Gualberto Mendonça Júnior que, desde abril, chefia a Diretoria de Serviço Geográfico (DSG) do Exército, instituição com mais de 130 anos de história.

Em uma entrevista exclusiva dividida em duas partes, Marcis Mendonça Jr. faz uma análise do papel da DSG e do estado da cartografia nacional. Nessa primeira parte, o oficial general que é doutor em Ciências Geodésicas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Mestre em Engenharia Cartográfica pelo Instituto Militar de Engenharia (IME) revela também que a prioridade no mapeamento do território nacional, agora, são as escalas de 1:50.000 e 1:25.000.

“O foco principal hoje, em relação ao mapeamento do Brasil, são as grandes escalas, até mesmo porque as demandas assim o exigem”, afirma Marcis, especialista em Defesa e Geociências, com ênfase em fotogrametria, cartografia, geodésia e mapeamento.

Acompanhe a seguir a primeira parte da entrevista.

A Geoinformação é, cada vez mais, um desafio geopolítico. Os países passam a se dividir entre aqueles que programam mapas e os que são programados. Considerando a secular contribuição do Exército brasileiro sobre o tema, qual é a sua visão sobre o atual estágio do mapeamento do país?

A DSG é um órgão do Exército Brasileiro, que atua, principalmente, no setor de Defesa e cujos produtos têm inúmeras aplicações na sociedade brasileira como um todo. Como exemplo, a geoinformação produzida pelo Exército é utilizada nas áreas de defesa, na segurança pública, no planejamento governamental em geral, na implementação e na gestão de infraestruturas diversas (transporte, saúde,…), na gestão e na conservação ambiental, no planejamento urbano, na prestação de serviços em geral e, mais recentemente, por todos os cidadãos brasileiros que utilizam a geoinformação em seu dia a dia, seja para se localizar e se deslocar em sua cidade, ou, simplesmente, para visualizar o terreno em terceira dimensão.

Em relação ao mapeamento sistemático, é uma pergunta interessante. As atividades desenvolvidas pela DSG acompanham a história de desenvolvimento do próprio país. Durante o século XIX, não tínhamos um mapeamento regular do Brasil, como outros países já tinham. Os levantamentos da época eram muitos específicos e irregulares no tempo. Havia missões que saíam em determinadas direções e faziam levantamentos diversos daquela área, dentre eles, o hidrográfico e o cartográfico.

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O mapeamento sistemático, do jeito que conhecemos nos dias de hoje, começou após a Proclamação da República. Dois assuntos criaram as condições para sua criação. O primeiro se relacionou com a recém-finalizada Guerra da Tríplice Aliança em 1870, na qual nossas Forças não tinham informações do terreno. Nos livros escritos por militares que combateram na guerra, fica claro como isso criou diversas dificuldades adicionais ao nosso pessoal. Além disso, a recolonização europeia foi um tema ativo durante boa parte do século XIX, e a defesa efetiva de nosso território dependia, entre outras coisas, da existência de informações do terreno.

Com isso, tivemos a criação do Serviço Geográfico em 1890, de maneira incipiente, o que culminou com sua extinção em 1894. Baseado nos conceitos de guerra vigentes à época, a evolução doutrinária nos conduziu à adoção do modelo europeu de exércitos, que foi materializada com a criação, em 1896, do Estado-Maior do Exército. Entre suas diversas missões, a elaboração da Carta Geral da República foi atribuída à sua 3a Seção.

Nos estudos técnicos decorrentes, em 1901, o Exército publicou um estudo chamado “A Carta do Brazil”, no qual efetivamente se utilizaram os conceitos científicos mais modernos à época para suportar o mapeamento do território nacional. Ali se tem, pela primeira vez, o conceito de mapeamento sistemático, com a divisão de nosso território em porções bem definidas e representadas em duas escalas básicas, sendo que a 1/1.000.000 corresponderia ao mapeamento geográfico e a 1/100.000, ao topográfico.

O estado do Rio Grande do Sul foi escolhido para iniciar esse processo. Sua área foi, então, dividida em folhas 1/100.000, tendo a folha mais ao sul recebido 1 e as demais o 2, 3 etc. Nos dias atuais, essa numeração foi invertida, tendo o Norte como referência inicial.

Posteriormente, a adoção da fotografia aérea como insumo básico para produção de cartas fez com que houvesse uma agilização no processo. Vislumbrando implementar essa nova tecnologia no pós-primeira grande guerra, o Exército contratou inúmeros técnicos do Instituto Geográfico Militar de Viena, o que ficou conhecido internamente como Missão Cartográfica Austríaca. O conhecimento internalizado nos permitiu construir a Carta do Districto Federal, na escala 1/50.000, em 1922. O Brasil foi um dos primeiros países que conseguiram efetivamente implementar o uso da visão estereoscópica na produção de cartas topográficas, sendo um marco em nível mundial no uso dessa tecnologia.

Em 1932, houve a fusão do então Serviço Geográfico Militar com a Comissão da Carta Geral do Brasil e surgiu o que é o conceito atual da DSG, na época, denominada Serviço Geográfico do Exército. A estrutura, à época, contava com duas unidades de levantamento de campo (a 1a Divisão de Levantamento em Porto Alegre, e a 2a Divisão de Levantamento, inicialmente na cidade do Rio de Janeiro e, posteriormente em Ponta Grossa, PR) e uma unidade para os trabalhos de gabinete (a sede do próprio serviço Geográfico do Exército). Com isso, a produção de cartas ganhou um grande impulso, do Sul para o Norte, e deu muita experiência para que, durante a Segunda Guerra Mundial, nos possibilitasse recusar o auxílio norte-americano no mapeamento do Nordeste brasileiro. Foi uma época de elevada produção cartográfica para nós. Até hoje, temos marcos geodésicos espalhados pelo litoral nordestino daquela época.

A criação do IBGE, no final dos anos 1930, aumentou a capacidade de produção de nosso país, o que nos permitiu caminhar no sentido de criar grandes projetos de mapeamento, como os projetos RADAM e RADAM Brasil, nos anos 1960, e o maior de todos, o Programa de Dinamização da Cartografia, nos anos 1970 e 80, que permitiu que todo o nosso território estivesse representado em alguma escala de mapeamento.

Quando houve a mudança de tecnologia para a produção digital, nos anos 90, com a introdução das primeiras estações fotogramétricas digitais e o uso de fotografias aéreas digitalizadas, começamos a utilizá-la imediatamente. O mapeamento do estado do Paraná na década de 1990, executado pela DSG e pelo IBGE, em parceria com a COPEL, já contou com essa tecnologia.

Nos anos 2000, tivemos dois projetos importantes, que procuraram acabar com o chamado Vazio Cartográfico na região amazônica. Era uma região na qual não havia o mapeamento na escala 1/100.000 e compreendia, principalmente, nossas fronteiras e algumas porções interiores.

Inicialmente, foi efetuado o mapeamento planimétrico, na escala 1/100.000, numa parceria entre o Ministério do Meio Ambiente, a DSG e o IBGE, por meio do uso de imagens orbitais. Posteriormente, no Projeto Radiografia da Amazônia, o Exército mapeou mais de 1 milhão de km2 com o uso de sensores RADAR imageadores nas bandas X e P. O uso combinado dessas bandas nos permitiu obter informações nos níveis das copas das árvores e do terreno, algo inédito até então. A avaliação técnica feita no início do projeto nos permitiu verificar que a exatidão obtida nos permitia mapear na escala 1/50.000, em vez da 1/100.000 inicialmente planejada. Hoje, estamos finalizando as últimas folhas de um total de pouco menos de 2.100 folhas. Infelizmente, por problemas orçamentários, houve um corte no final do projeto e 217.000 km2 não foram mapeados.

Em paralelo, estabelecemos projetos nos quais mapeamos partes dos estados da Bahia e do Rio Grande do Sul, em parceria com os governos estaduais, nas escalas 1:25.000 e 1:50.000.

Todos os projetos nos permitiram ter, na atualidade, aproximadamente, 6% do território nacional mapeado em 1:25.000 e 29% em 1:50.000. É pouco? Relativamente, é. Mas, se considerarmos nossas dimensões continentais e que, há 15 ou 20 anos, o que tínhamos em 1:25.000 era algo pouco superior a 1% e, em 1:50.000, 11%, então, nesse período, houve um grande acréscimo nessas escalas maiores.

Em relação à escala 1:100.000, temos algo em torno de 70% já há algum tempo, e esse percentual não mudou muito, porque, com o aumento da tecnologia, nós priorizamos as escalas maiores. O mesmo ocorreu em relação a escala 1:250.000, que já apresentava quase 100% do território mapeado.

O foco principal hoje, em relação ao mapeamento do Brasil, são as grandes escalas, até mesmo porque as demandas assim o exigem.

Em resumo, o mapeamento sistemático brasileiro foi, historicamente, baseado em grandes projetos, executados, principalmente, pela DSG e pelo IBGE, estabelecidos nas parcerias com outros órgãos dos governos federal e estadual.

Por que a legislação é fundamental para relacionar atividades tão diferentes que usam a geoinformação como insumo básico? Como garantir que toda a base geoinformacional possa utilizar a mesma estrutura fundamental para seu desenvolvimento?

Como em qualquer indústria, o estabelecimento de padrões é fundamental. Uma característica importante da geoinformação é que ela se adapta e se molda muito bem à modelagem digital do espaço geográfico em toda a sua cadeia produtiva, desde a aquisição dos diversos insumos, como imagens, levantamentos GNSS, LiDAR e RADAR, até a sua disponibilização ao usuário final, na forma de sistemas de informações geográficas.

A primeira questão, que se refere ao estabelecimento de padrões, é o da definição dos parâmetros do mapeamento do território como um todo, principalmente no uso obrigatório dos referenciais geodésicos materializados no Sistema Geodésico Brasileiro (SGB). Ele nos fornece a origem, a unidade de medida e os parâmetros de orientação para todas as mensurações que serão realizadas nos projetos. O SGB é o padrão mais importante de todos, pois é dele que obtemos a modelagem terrestre a ser utilizada.

A segunda se refere a um problema que persiste no tempo, desde os primeiros sistemas CAD, nos anos 1980, e se relaciona com a definição do formato digital dos dados geoespaciais. Sua complexidade, que conjuga a representação espacial e os dados qualitativos de entidades existentes no espaço geográfico, chega, na maioria das vezes, a ser impeditiva, no reuso de produtos existentes. Se não houver uma legislação que defina exatamente o padrão dos dados, a probabilidade de não haver interoperabilidade é muito elevada, o que restringe severamente a aplicação dessa geoinformação já existente. O reuso é uma característica importante que deve ser buscada intensamente para economizar os recursos humanos e financeiros já empregados no mapeamento de uma região.

Por fim, temos a necessidade de acesso a todas as porções de nosso território, sejam áreas públicas ou privadas. Embora seja um assunto que pouco se relacione com o usuário final, ele é importante na garantia da qualidade final dos produtos. Os projetos de mapeamento do Estado Brasileiro englobam grandes áreas contínuas e, por isso, existe a necessidade de padronização da legislação, de maneira que se permita ao órgão que está executando esse mapeamento o acesso livre a essa porção territorial. Isso é uma outra questão importante, porque o processo produtivo não é só baseado em imagens. Existem processos que são realizados no terreno, nos quais o integrante desse órgão tem que ter acesso a qualquer porção na área que está sendo mapeada.

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