Luís Massonetto: “Vários países vêm estruturando modernas agências geo. Talvez seja um caminho”

Fonte: Arquivo pessoal Luís Massonetto

Um dos maiores especialistas da América Latina sobre os aspectos jurídicos da produção do espaço urbano, o professor de Direito Econômico e Direito Urbanístico da USP e coordenador de pesquisa sobre Regulação Indutora no Programa de Pós-Graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Uninove, Luís Massonetto, celebra a iniciativa pioneira de algumas cidades na constituição de geoportais como repositórios de informação. Mas, apesar de a prática ser bem-vinda, ele adverte que isso vai “exigir algum esforço de coordenação nacional para criação de padrões mínimos que garantam a interoperabilidade entre os sistemas e a assistência técnica a cidades e regiões com capacidade estatal reduzida”. Para ele, um dos caminhos possíveis é o que vem sendo adotado por vários países, de se criar uma moderna agência geo.

No próximo 10 de julho, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257) fará 20 anos. Qual a sua importância para o país?

O Estatuto da Cidade trouxe alguns avanços normativos inegáveis. Contudo, não existe Estatuto da Cidade sem uma estrutura de financiamento adequada à expansão e democratização da infraestrutura urbana. Não podemos perder de vista que o Estatuto foi promulgado depois de mais de uma década de discussão e apenas um ano após a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou seja, foi embalado pelo sonho do Estado Social, mas despertou no contexto político da austeridade fiscal permanente. Tanto que o projeto de desenvolvimento urbano, anunciado na Constituição e reiterado várias vezes no Estatuto ficou reduzido à regulação urbanística – expressão que curiosamente não consta no texto do Estatuto, mas que virou linguagem corrente no ambiente do novo direito público da economia. O grande aprendizado, 20 anos depois, é que a economia política do urbano é mais importante que as disposições legais. Em certa medida, o Estatuto produziu resultados contraditórios. Na ausência do fundo público, as diretrizes gerais da lei viraram discurso. E sem propriedade social, a única função social da propriedade foi virar mercadoria. E saímos do plano discurso do período autoritário para a armadilha do direito urbanístico, discurso do período democrático.

Os instrumentos da política urbana previstos em lei são eficazes ante os desafios disruptivos? A questão vem, principalmente, por conta das mudanças climáticas, do enorme uso de dados e da mudança da matriz energética que, em 10 anos, por exemplo, deve aposentar postos de gasolina e fomentar o uso intensivo dos telhados para geração elétrica.

O Brasil tem um déficit acumulado de revoluções tecnológicas. Ajustes normativos sempre são importantes, mas, em relação aos desafios disruptivos, temos que enfrentar algumas questões de natureza política. A mais importante delas talvez diga respeito à regulação da propriedade intelectual e reponha várias reflexões da teoria do subdesenvolvimento e da dependência. A nova agenda ambiental pode ser uma possibilidade concreta para impulsionar um outro processo de desenvolvimento, especialmente em um país megadiverso como o Brasil. Mas pode também ser a chave de implantação de novos e atualizados mecanismos de captura do fundo público via pagamento de royalties, de perpetuação da pobreza e aumento da desigualdade e da fragilização da soberania nacional em nome de desafios cosmopolitas. Mas é inegável, na linha da pergunta, que talvez tenhamos que repensar as diretrizes nacionais das políticas urbanas, incluindo nosso federalismo disfuncional, em face desses novos desafios.

Uma forma de ver e medir a aplicação dos instrumentos de política urbana é pelos geoportais, que permitem a qualquer cidadão, por meio de uma plataforma de mapas interativos, visualizar e explorar informações geográficas referentes ao município. Geralmente, a emissão de plantas de localização e a consulta de planos são disponibilizadas online, produzindo transparência à administração municipal. O que precisa ser feito para que isso possa ser uma prática corriqueira nos municípios?

Um país extenso e megadiverso como o Brasil deveria ter entre suas principais preocupações o controle soberano do seu território. Infelizmente, temos dado pouca prioridade às informações geográficas. A multiplicação de geoportais é uma novidade muito interessante e muitas cidades têm obtido avanços importantes na execução da política urbana por conta do geoprocessamento e da criação de banco de dados multifinalitários. Contudo, apesar da bem-vinda liderança das cidades na constituição desses novos repositórios de informação, tal prática vai exigir algum esforço de coordenação nacional para criação de padrões mínimos, para garantir a interoperabilidade entre os sistemas e para prestar assistência técnica a cidades e regiões com capacidade estatal reduzida. Vários países do mundo vêm estruturando modernas agências geo. Talvez seja um caminho.

Atualmente, todas as cidades querem se intitular “inteligentes”. Como uma cidade inteligente dialoga com o Estatuto da Cidade, que não foi pensado nesse contexto? Dá para ir além de uma PPP de iluminação pública ou de um serviço de zeladoria?

O termo cidade inteligente precisa ser tomado com muito cuidado para não virar um Cavalo de Tróia de tecnologia proprietária dentro do orçamento das cidades. Nos últimos anos, preocupadas em dar alguma racionalidade a essa nova fonte de despesas (correntes e de capital), várias cidades desenvolveram Planos Diretores de Tecnologia de Informação e Comunicação. Essa é mais uma camada da política urbana. A palavra cibernética, sempre associada às tecnologias das smart cities, tem a mesma raiz grega da palavra governo. De modo que cibernética é também governo, governança, governabilidade. Como todos os seus riscos e potencialidades. Mais um capítulo para uma necessária revisão do Estatuto da Cidade.

Segundo a Constituição, compete aos municípios legislar sobre o interesse local (ou do lugar, como preferem os geógrafos). Lugar é o espaço de convivência, que vai muito além da função social da propriedade e impõe um ordenamento do território mínimo. Com a rápida mudança de paradigmas tecnológicos e sociais, incluindo as alterações das relações de trabalho por força da covid-19, é possível vislumbrar o que será o Direito Urbanístico em 2035?

O lugar é o espaço de convivência e também o espaço de novos repertórios de socialização, incluindo a reivindicação por outros modos de vida. É no espaço da convivência que expressões sociais muito potentes, como a reciprocidade e a autonomia, ganham centralidade. Infelizmente, pelas razões já apontadas, o Estatuto da Cidade contribuiu para a homogeneização do espaço urbano e para a difusão de práticas mercantis muitas vezes extrativistas. É preciso pensar na diversidade das políticas para as cidades e na criação de instrumentos capazes de acolher outros modos de constituição do local, fazendo do mercado um acessório da vida social e não a sua razão de ser.  Mas isso não passa por leis, reformas do Estatuto (ainda que tecnicamente o Estatuto pudesse ser bem melhor). O direito é importante, mas não pode tudo. Este é o grande aprendizado para o Direito Urbanístico de 2035.

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