Marcus Peixoto: Só no MAPA há cerca de 200 sistemas de informação. É necessário integrar

Foto: Arquivo pessoal

“Sem um sistema nacional de informações oficiais que integre as diversas bases de dados estatísticos, geográficos e de registros administrativos da União, estados, DF e municípios, será impossível para a administração pública, nos seus diversos níveis, avaliar as políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados”. O alerta é feito por Marcus Peixoto, consultor legislativo do Senado Federal para Economia e Agricultura, ex-assessor da presidência da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Pós-Doutor pelo Observatório para a Qualidade da Lei da Faculdade de Direito da UFMG. Em entrevista ao Geocracia, Peixoto ressalta ser fundamental a elaboração de um marco legal que institua esse sistema como política de Estado: “Todos temos a ganhar com isso”.

É possível sintetizar como o Congresso Nacional debateu, ao longo do tempo, os sistemas estatístico, cartográfico e geográfico brasileiro?

Na verdade, não houve esse debate, nas últimas décadas. A legislação sobre estatísticas e geografia nacionais é das décadas de 60 e 70 do século XX, e não previu as mudanças por que o mundo passaria nos últimos 50 anos. É um marco regulatório insuficiente para amparar uma política de Estado que faça frente aos grandes e variados desafios relacionados à produção nacional de informações oficiais, fundamentais para tomadas de decisão, tanto pelo setor público quanto pelo setor privado. Por sua atribuição de instituir políticas de Estado, o Congresso Nacional precisa realizar a análise de impacto regulatório (AIR) das proposições legislativas. Isso raramente é feito. Outra missão institucional do Parlamento é a fiscalização das ações do Poder Executivo, por meio da análise de impacto legislativo (AIL), isto é, das leis que amparam as políticas públicas. Tanto no caso de AIR quanto de AIL, dados oficiais, tempestivos, de qualidade e acessíveis são fundamentais.

A Emenda à Constituição nº 109, de 2021, instituiu o §16 no art. 37, para determinar que órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados. É um avanço, mas isso não será possível ou efetivo sem um sistema nacional de informações oficiais que integre as diversas bases de dados estatísticos, geográficos e de registros administrativos da União, estados, DF e municípios.

Dados tendem ao invisível, não é uma grande obra a ser inaugurada em praça pública. Como convencer políticos em geral, e senadores em específico, da importância política de se criar um marco estatístico e geoinformacional no país?

Basta fazer a correlação. Os exemplos estão aí e são diários. Vamos pegar o caso da pandemia de covid-19: estados tiveram que se unir em um consórcio para termos estatísticas oficiais sobre casos e vacinação, embora a coordenação dessas informações devesse ser do Ministério da Saúde, por meio do DataSUS. Houve grandes complicações com os diversos registros administrativos oficiais que ampararam as inscrições e pagamentos do auxílio emergencial, feitos pela Caixa Econômica Federal. Segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), publicada no início de 2021, dos R$ 293 bilhões destinados, em 2020, ao socorro financeiro a famílias brasileiras durante a pandemia de covid-19, R$ 54 bilhões podem ter resultado em pagamentos indevidos, com base nas informações da PNAD Contínua do IBGE. Esses recursos fizeram e ainda fazem falta aos cofres públicos, e principalmente para os mais pobres que ainda precisam deles, ou para os investimentos públicos necessários para mitigar as desigualdades de desenvolvimento econômico local ou regional agravadas com a pandemia.

A atuação da classe política sempre refletirá o resultado da articulação de interesses pelas organizações da sociedade, sejam associações empresariais, sindicais ou corporativas, de qualquer natureza, e movimentos sociais. Por isso é tão importante que a sociedade também compreenda a importância e se engaje nos debates e ações para construção de um sistema nacional de informações oficiais moderno e eficiente, embasado num marco legal que o institua como política de Estado. Todos temos a ganhar com isso.

Um marco estatístico e geoinformacional tende a contrariar toda uma cultura de invasões de propriedade, grilagens, ocupações irregulares, queimadas de florestas, contaminações de solos, entre outros. É possível obter consenso no Congresso Nacional para obter uma legislação alinhada ao século 21? Afinal, a Constituição Federal prevê essa necessidade, mas ela está sem regulamentação desde sua promulgação em 1988…

Compete à União organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional (art. 21, XV), e compete privativamente à União legislar sobre o sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia nacionais (art. 22, XVIII). A regulamentação em lei existe, pois considera-se que, por não contrariar a Constituição, a legislação produzida nos anos 60 e 70 do século passado foi por ela recepcionada e está em vigor. Mas, como muitas outras leis, esse marco legal foi pouco ou nada alterado e precisa ser atualizado, olhando-se para os desafios futuros.

Há uma legislação complexa que organiza os registros administrativos e cadastros referentes aos imóveis rurais e urbanos e o processo de regularização fundiária. A legislação ambiental também é extensa. Um marco estatístico e geográfico tem de instituir a integração obrigatória e automática dos sistemas de informação fundiária e ambiental e de outros sistemas, algo com que a legislação fundiária e ambiental não se preocupa. Naturalmente, essa integração não é um processo trivial. Há desafios conceituais, de desenvolvimento de tecnologias de informação, de superação de resistências e culturas institucionais, e há necessidade de recursos e investimentos para custear esse processo. Mas a economia que se obterá evitando-se a duplicidade da coleta de dados e o aumento da eficiência das políticas públicas compensarão largamente os custos dessa integração.

Um dos setores mais prejudicados pela ausência de uma base de dados unificada no país é o agropecuário. A grande pressão comercial internacional não raro se utiliza de acusações de desmatamento e queimadas em florestas para justificar barreiras às exportações agrícolas – uma situação semelhante à vivida pela Indonésia, há uns anos, e resolvida com a adoção pelo país de uma estratégia One Map Policy, que lhes permitiu provar suas argumentações com dados georreferenciados. A força do setor agro no Parlamento não poderia ser usada para avançar com essa pauta?

Sem dúvida, as organizações do agronegócio têm essa capacidade e isso já foi mostrado em outras pautas. Mas falta uma compreensão mais profunda e sistêmica das mudanças necessárias no marco legal e um debate prévio e amplo, envolvendo os diversos setores da sociedade e do Estado. Esse não será um debate simples. Só o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento possui cerca de 200 sistemas de informação. Então, outros setores da economia e a sociedade organizada devem também entrar nesse debate, pois os impactos são multissetoriais. Esse debate não pode ser liderado por apenas um setor, por mais importante que seja e por maior que seja a sua atuação no Parlamento.

Estados, DF e municípios ou têm seus próprios sistemas ou alimentam com dados os sistemas federais. Por exemplo, as notas fiscais eletrônicas são emitidas no âmbito dos sistemas das secretarias estaduais de municipais de Fazenda. Mas podem fornecer uma enormidade de dados que não são integrados, ainda, com outros sistemas de informação.

Como muitos dados estatísticos e registros administrativos já são georreferenciados, há um enorme potencial do uso dessa geoinformação para uma análise espacial mais eficiente dos processos sociais, econômicos e ambientais. O Decreto nº 6.666, de 2008, que criou a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), foi um avanço e estabeleceu, no art. 3º, que o compartilhamento e disseminação dos dados geoespaciais e seus metadados é obrigatório para todos os órgãos e entidades do Poder Executivo federal e voluntário para os órgãos e entidades dos Poderes Executivos estadual, distrital e municipal. Mas essa disposição não vem sendo cumprida efetivamente. Há uma multiplicidade de plataformas na Internet, de diversos órgãos federais, cada uma fornecendo geodados produzidos no âmbito da respectiva instituição, em vez de se ter um portal único, que deveria ser o da INDE.

A INDE é regulamentada por decreto presidencial e, portanto, uma política do governo federal. Assim, o Decreto não pode obrigar estados, o DF e os municípios a aderirem à plataforma. Embora já tenha “sobrevivido” a quatro governos, o ideal seria um marco legal instituindo uma política de Estado para os dados estatísticos e geográficos que alcançasse os demais entes da federação.

Quando você esteve na Fundação IBGE, foi criada a Frente Parlamentar de Geografia, Estatística e Meio Ambiente (GEMA). Todavia, o IBGE não deu continuidade. Qual é a importância de se ter uma frente parlamentar debatendo o tema?

Milhares de novas proposições legislativas são apresentadas todo ano na Câmara dos Deputados e no Senado Federal e se acumulam com dezenas de milhares outras que foram apresentadas e ainda estão em tramitação. As frentes têm um papel relevante para contribuir na organização do debate legislativo.

Atualmente, existem mais de 340 frentes parlamentares no Congresso Nacional. Elas são recriadas a cada nova legislatura e se formam por pressão política ou solicitação dos setores interessados. Mas é comum ver parlamentares que são signatários de dezenas de frentes parlamentares diferentes. Alguns parlamentares coordenam várias frentes. Então, é praticamente impossível que as frentes funcionem contribuindo para o debate no Parlamento (sobre novas leis ou mudança das atuais, ou sobre fiscalização do Executivo), sem que recebam o apoio organizado e sistemático dos setores interessados da sociedade. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é um exemplo de frente que recebe o apoio organizado e articulado de quase uma centena de organizações representativas de vários setores do agronegócio nacional.

A Frente GEMA foi criada no final de 2016, em parte como resultado das ações desenvolvidas pelo IBGE no Congresso para se garantir mais recursos à realização do Censo Agropecuário em 2017. Meu trabalho junto à Presidência do IBGE, entre 2017 e 2018, foi organizar ações de assessoria parlamentar da Fundação, que não tinha e ainda não tem essa atividade estruturada. Mas a Frente contou apenas com apoio do IBGE e, apesar do trabalho intenso desenvolvido, não foi recriada em 2019. É necessário que, além do IBGE, outros órgãos federais, estaduais e municipais que produzem ou utilizam dados estatísticos e geográficos oficiais se articulem com outros setores da sociedade para apoiar a criação e o funcionamento, no longo prazo, de uma nova frente, já que o novo marco legal poderá ensejar um debate que perpassa mais de uma legislatura.

Apesar de não ter continuado, esse trabalho da Frente GEMA serviu de base para uma pesquisa sobre a importância do marco regulatório do Geo. Quais foram as premissas adotadas por essa pesquisa?

O IBGE iniciou esse debate em 2018, tanto internamente quanto no Congresso. Entretanto, não foi possível aprofundá-lo. Era ano eleitoral e as demandas do IBGE eram muitas e diversas, relacionadas à preparação do Censo Demográfico, realização de concurso público e busca de complementação de recursos no orçamento para 2019.

Com a descontinuidade da atividade de assessoria parlamentar do IBGE e a não recriação da Frente GEMA, surgiu a ideia de se dar continuidade ao debate no âmbito de uma pesquisa de pós-doutorado que está sendo ainda desenvolvida junto ao Observatório para a Qualidade da Lei da Faculdade de Direito da UFMG, supervisionada pela Profa. Fabiana de Menezes Soares. Também participam como colaboradores da pesquisa o Dr. Luiz Ugeda, da Geodireito, e o Dr. Roberto Luís Olinto Ramos, ex-Presidente do IBGE e atualmente pesquisador do IBRE/FGV.

É uma pesquisa que busca entender quais são os padrões internacionais para organização de sistemas nacionais de informação estatística e geográfica, qual o amparo legal para instituição ou reorganização desses sistemas e quais as mudanças necessárias no marco regulatório brasileiro para que o país se adeque a esses padrões. Isso é importante, por exemplo, para que consigamos coletar e compartilhar informações oficiais e confiáveis sobre a evolução dos indicadores das metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), ou para que possamos ser aceitos na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A evolução dos sistemas de informação estatística e geográfica é um processo contínuo, mas ainda muito fragmentado setorialmente. Na minha opinião, essa fragmentação não permite a construção de um debate mais conceitual e sistêmico sobre necessidade de um marco legal que oriente a reorganização do novo sistema nacional de informações oficiais.

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