A Gestão Fundiária – e sua intrínseca relação com a Sustentabilidade – é uma questão de urgência nacional, segundo Quêidimar Guzzo, presidente do Comitê Nacional de Certificação do Incra. Com uma carreira que transita entre o direito notarial e o registral, e grande experiência acadêmica, a agrimensora enfrentou desafios que moldaram sua perspectiva sobre as políticas de terras no Brasil e agora luta para suas mudanças e implementações.
Ao longo desta entrevista exclusiva para a Geocracia, Quêidimar traz aos leitores como sua experiência e as inovações que ajudou a implementar estão moldando o futuro do georreferenciamento e da certificação de imóveis rurais no país, com uma abordagem mais eficiente e responsável do território brasileiro ao promover a gestão sustentável dos recursos naturais, refletindo o compromisso com a preservação ambiental e o desenvolvimento socioeconômico das regiões impactadas. Confira!
Sua experiência no Instituto Estadual de Meio Ambiente do Espírito Santo (IEMA), além da atuação especializada em Direito Notarial e Registral, trouxeram inúmeros desafios e soluções, principalmente quanto à segurança jurídico-territorial. Poderia compartilhar qual o principal desafio da área?
Quando falamos em certificação de imóveis rurais, inevitavelmente associamos à segurança jurídica do imóvel, uma vez que o georreferenciamento garante o princípio da especialidade objetiva no registro de imóveis e a não sobreposição garante o princípio da especialidade subjetiva. No entanto, entendo que a maioria dos profissionais bem como alguns registradores, ainda não entenderam a exata dimensão do que isso significa e o que deve ser considerado ao fazer o georreferenciamento de um imóvel com vistas à certificação.
Costumo dizer que a certificação, antes de tudo, é um serviço de perícia. É necessário fazer uma investigação do imóvel para garantir de que o limite que está sendo medido, realmente condiz com o imóvel que consta na respectiva matrícula, porém, muitos profissionais nem se dão ao trabalho de ler a matrícula e alguns, não sabem interpretá-la e isso eu considero o maior desafio nessa área que é a necessidade de capacitação dos profissionais envolvidos na área registral.
Tem ocorrido inúmeros pedidos de cancelamento de certificação pelo fato do oficial negar o registro da certificação por não ter sido efetuado o georreferenciamento de acordo com a matrícula e, como exemplo, podemos citar: certificação de fração ideal de imóvel, certificação de matrícula que não considerou desmembramento já registrado anteriormente, certificação em nome de proprietário que possui apenas contrato particular de compra e venda, etc.
Hoje, as áreas fundiária, ambiental e registral estão integradas e não tem como dissociá-las, tornando-se urgente a qualificação e a conscientização dos profissionais para esse tema.
Você participou ativamente na elaboração da 2ª Edição da Norma Técnica de Georreferenciamento de Imóveis Rurais do INCRA e do Manual Técnico correspondente. Quais foram as principais mudanças ou atualizações introduzidas e como elas impactam a certificação de imóveis rurais hoje?
Eu considero que a 2ª Edição da Norma Técnica foi a que teve maior relevância. Tínhamos uma 1ª edição que era muito enxuta e que não trazia uma padronização, principalmente na forma de apresentação dos trabalhos.
Vale lembrar que naquela época os processos de certificação eram analógicos, com apresentação de todas as peças técnicas e documentação do imóvel de forma impressa e com os dados digitais apresentados em mídias CD-R. A falta de padronização da apresentação, nos levava a uma dificuldade enorme em identificar a localização dos arquivos dentro do CD, bem como não trazia uma padronização das plantas e memoriais o que trazia até uma insegurança por parte dos registradores, já que cada profissional apresentava de um jeito.
Também era uma norma muito superficial no que diz respeito aos serviços executados por GPS, focando muito nos serviços por topografia convencional. Apesar da sua limitação, teve uma importância muito grande, pois possibilitou estabelecer um “norte” para o início do programa de certificação, numa época em que o Incra ainda nem tinha feito o concurso para a contratação de servidores para atuar nesse serviço.
Com o ingresso dos novos servidores e com a experiência adquirida nas análises baseadas na 1ª Edição da Norma, foi possível elaborar uma 2ª Edição muito mais voltada à realidade da época em que foram estabelecidos critérios para o uso de cada tipo de medição/tecnologia utilizada e padrões de apresentação de peças técnicas, o que representou um ganho enorme na qualidade dos serviços apresentados e na melhoria das nossas análises. Sempre sugiro para quem está começando agora nesse ramo e que não possui muita experiência na área, que dê uma “estudada” nesta edição, porque ela, de certa forma, “ensina” como devem ser executados os serviços.
O Manual Técnico atual – 2ª Edição, teve como objetivo principal a atualização com relação às novas tecnologias existentes para execução de georreferenciamento, bem como a inclusão do uso de outras metodologias como as bases cartográficas existentes e o método da Projeção Técnica, para situações em que a identificação do imóvel por outros métodos não é possível.
O impacto dessas atualizações trouxe um maior número de possibilidades de medição, contemplando, praticamente, todos as situações possíveis de determinação de coordenadas georreferenciadas. Também trouxe um detalhamento maior nos levantamentos por aerofotogrametria (incluindo Drone/VANT) e Sensoriamento Remoto e trouxe para o profissional uma maior responsabilidade sobre as informações do imóvel.
Qual o papel das Geotecnologias e do Georreferenciamento no futuro da gestão de propriedades rurais no Brasil, especialmente em termos de sustentabilidade e eficiência administrativa?
Em primeiro lugar, não há como falar de sustentabilidade sem falar de gestão fundiária. O conhecimento da malha fundiária nacional é essencial para uma gestão sustentável, uma vez que permite identificar onde estão os grandes e pequenos imóveis, onde estão concentradas as maiores reservas florestais bem como onde estão os empreendimentos que mais impactam o meio ambiente. Feita esta consideração, podemos afirmar que o georreferenciamento está diretamente relacionado à sustentabilidade e, também, à eficiência administrativa, uma vez que este conhecimento permite que a administração pública execute programas para combater os danos ao meio ambiente, bem como identificar boas práticas para a serem implementadas em maior escala.
As geotecnologias vêm para facilitar os serviços de georreferenciamento, permitindo um reconhecimento do território de forma mais rápida e precisa. Há uns anos, não tínhamos imagens de aerofotogrametria obtidas com precisão com rapidez e baixo custo, porém, hoje, isso é possível com o uso de drones e VANT’s, porém, quando falamos em eficiência, não podemos nos apenas no levantamento topográfico em si, mas considerar que, independentemente do método utilizado, a visita ao imóvel e às suas divisas, se torna imprescindível, pois é necessário verificar “in loco” se as divisas do imóvel estão corretas, se os vizinhos estão de acordo, entre outras coisas não menos importantes. Portanto, não se deve pensar em georreferenciamento exclusivamente pelo ponto de vista da medição, mas entender que as tecnologias são apenas um meio e não o fim.
Como presidente do Comitê Nacional de Certificação, quais são os seus objetivos para o futuro da certificação de imóveis rurais no Brasil, e existe algum projeto ou iniciativa em andamento que você gostaria de destacar?
Desde que assumi essa função, o meu objetivo sempre foi o de levar informação não somente aos profissionais, mas, principalmente, aos próprios analistas do Incra. A grande maioria de nós não teve qualquer capacitação nessa área, principalmente no que diz respeito às análises. Nesse sentido, estamos sempre divulgando aos analistas dos Comitês Regionais, em primeira mão, por meio de reuniões virtuais, todos as inovações e alterações que ocorrem nos Manuais e no Sigef. Em 2023, conseguimos capacitar 60 analistas dos Comitês de todas as Superintendências Regionais do Incra, na tentativa de padronizar as análises em todo o país.
Com a padronização da análise, foi possível implementar a fila nacional de análise de requerimentos no Sigef, iniciada em fevereiro/2024, que tem como principal objetivo, otimizar a força de trabalho dos analistas dos CRC’s permitindo uma equalização no tempo de análise dos requerimentos em todas as regionais. Assim, Comitês que possuem menos demanda ou muitos analistas, podem subsidiar os comitês com muita demanda e/ou poucos analistas, fazendo com que todos os requerimentos sejam enviados numa fila única respeitando a ordem cronológica, independentemente de onde o imóvel está localizado. Ainda estamos no início desse projeto, sabemos que temos coisas para ajustar, mas entendemos que é um grande avanço.
Também estamos com um projeto junto à Comunicação do Incra para criarmos vídeos práticos de funcionamento do Sigef, bem como lives com informações relevantes sobre certificação que ficarão disponibilizadas no canal do Youtube do Incra.
Alguns outros projetos, principalmente, sobre o Sigef, já foram demandados junto ao Incra, mas sua implementação depende da disponibilidade de recursos financeiros, o que não está na governabilidade do Comitê Nacional.
Dada sua experiência também acadêmica e prática no ensino de georreferenciamento de imóveis rurais, que mensagem deixaria aos profissionais e como você vê o futuro de tais atividades?
A mensagem que eu deixo é a de estudar sempre! A qualidade dos profissionais, de uma forma geral, está muito ruim tanto na parte técnica quanto na parte legal. O que se vê são muitos profissionais fazendo cursos de baixa qualidade, preocupados apenas com a obtenção do certificado para se credenciar, porque, na sua visão, ele “já sabe usar o GPS”, sendo que a medição é o menor dos problemas no geo. Querem comprar um drone barato e saber como usá-lo para executar um georreferenciamento, mas não sabe nem a área que está registrada na matrícula do imóvel, o que se dirá da diferença entre uma matrícula e uma escritura.
Vejo com muita preocupação a falta de interesse dos profissionais em fazer um serviço de qualidade, preocupados apenas com o preço e não com o valor do seu trabalho, que são coisas muito distintas. A partir do momento que você agrega valor ao seu trabalho, você consegue cobrar um preço condizente, mas não tem como agregar valor sem saber ao menos interpretar uma matrícula. Estamos tendo um número muito grande de cancelamentos de certificação por erro e isso emperra muitos negócios imobiliários e geram grandes disputas no âmbito judicial.
Os profissionais sequer se dão ao trabalho de ler com atenção os Manuais Técnicos, o que evitaria a execução de muitos serviços errados e a criação de muitos requerimentos sem sentido.
Na minha experiência como professora de cursos de pós-graduação em georreferenciamento, observo que a maioria dos profissionais só querem saber o que precisa para não ser “pego” na auditoria, mas não estão nem um pouco preocupados com a qualidade do serviço que fazem. Vejo um futuro em que a disputa por terras será substituída pela disputa de profissionais em definir quem mediu certo, colocando em xeque a necessidade do georreferenciamento e da certificação.
Nesse sentido, o CNC tem tentado fechar o cerco dos maus profissionais intensificando as auditorias e aplicando as sanções previstas no Manual de Gestão – 2ª Ed., não é uma missão fácil, mas estamos fazendo a nossa parte, dentro das atribuições que nos compete.
* QUÊIDIMAR GUZZO é Engenheira Agrimensora formada pela Universidade Federal de Viçosa – UFV/MG, especialista em Geoprocessamento e Especialista em Direito Notarial e Registral, servidora de carreira do Incra, onde exerce a função de Chefe do Serviço de Cartografia e Preside o Comitê Nacional de Certificação. Já passou por diversos órgãos, como Instituto de Meio Ambiente do Espírito Santo – IEMA e Instituto de Terras do Espírito Santo – IDAF, foi professora substituta da Universidade Federal do Espírito Santo e em cursos de pós graduação em georreferenciamento de imóveis rurais pelo Instituto Federal do Espírito Santo e pela Universidade Tuiuti do Paraná, além de ter ministrado palestras, cursos e consultorias na área de georreferenciamento e direito registral para diversas instituições públicas e privadas (IEMA, IBAMA, Corpo de Bombeiros, Associação dos Engenheiros Florestais do ES, Sociedade Espiritossantense de Engenheiros Agrônomos, CREA/ES, Mútua/ES, sindicato dos Notários e Registradores do ES – Sinoreg, etc.).
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NÃO HÁ SUSTENTABILIDADE SEM GESTÃO FUNDIÁRIA, AFIRMA PRESIDENTA DO COMITÊ NACIONAL DE CERTIFICAÇÃO DO INCRA
Entrevista: Abimael Cereda Junior (MtB 91827/SP)
Fotografia e mini-cv: Enviados pelo entrevistado
Edição: Abimael Cereda Junior e Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches