Em artigo para o Estadão publicado nesta terça-feira (21), o fundador do portal Geocracia, o advogado e geógrafo Luiz Ugeda, analisa a nova rodada do conflito territorial entre Chile e Argentina, após a recente decisão unilateral chilena de expandir a sua plataforma marítima. Segundo Ugeda, a nova escalada da disputa internacional entre os dois países ressalta a importância do mapeamento do mar e da georegulação, iniciativas que têm dado certo em outras geografias.
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A corrida territorial entre Chile e a Argentina rumo ao sul está longe de terminar. O Chile decidiu, por decreto, expandir sua plataforma continental em 30.500 quilômetros quadrados (duas vezes o tamanho do Distrito Federal) para a parte entre a América do Sul e a Antártida. Segundo a Argentina, 5.500 km2 lhes pertencem e o restante é patrimônio universal.
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É uma continuidade do que ficou conhecido como o Conflito de Beagle que, no final de 1978, contou com a mediação do papa João Paulo II, dois meses após o início de seu pontificado. A disputa pelas ilhas Picton, Lennox e Nueva foi resolvida pela fixação do meridiano 67º16´ como a fronteira marítima entre os países. Uma nova mediação do Vaticano parece improvável, dado que o papa Francisco é argentino e, em sua primeira bênção, disse que os cardeais foram buscar um novo pontífice ‘no fim do mundo’, entendida como referência ao Canal de Beagle.
Fato é que as nações interpretam os domínios da plataforma marítima da maneira que lhes é mais vantajosa. O Chile realizou um ato governamental sem passar pelo Congresso Nacional com uma interpretação no mínimo questionável. A Argentina, por sua vez, já divulgou mapa em que insere como sua plataforma continental praticamente todo o sul do Atlântico Sul, envolvendo todas as ilhas britânicas de Falklands, Sandwich do Sul, Geórgia do Sul, Orcadas do Sul e toda a península antártica. Colômbia e Nicarágua, que não têm fronteira terrestre entre si, travam um enorme contencioso no mar do Caribe para fixar fronteira marítima.
Além dos evidentes objetivos geopolíticos, há as questões geoeconómicas. No Brasil, os royalties da exploração do petróleo na plataforma marítima já levaram o estado do Rio de Janeiro a se contrapor à divisão dos recursos com o resto do país. O Paraná, por sua vez, tem uma plataforma marítima côncava, resultando que São Paulo e Santa Catarina façam divisa marítima entre si e afaste os parananeses de colher os benefícios da exploração marítima para além do porto de Paranaguá.
Alguns países têm apostado em meios para aprimorar a governança da plataforma marítima. O Planejamento Espacial Marítimo (PEM) costuma ter como premissa o desenvolvimento de dados geoespaciais de componentes físicos e ambientais. As georegulamentações são frequentemente construídas sobre dados de limites jurisdicionais e, portanto, devem refletir as melhores práticas desses dados subjacentes. Quando adicionados ao PEM, esses dados ajudam a visualizar as compatibilidades e inconsistências nas políticas públicas federal, estaduais e municipais.
A experiência australiana, por exemplo, indica que a Infraestrutura de Dados Espaciais Marítima (ou MSDI – Maritime Spatial Data Infrastructure, na sigla inglesa) fornece uma plataforma ideal para se implantar um portal internacionalmente consistente para um Sistema de Informação Geográfica (SIG), permitindo o registro de informações regulatórias marítimas. Esse conceito não é novo, porém os recentes desenvolvimentos tecnológicos o tornam mais barato e fácil de implantar. E o formato de dados permite identificar melhor os direitos e os conflitos de propriedade.
Por sua vez, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), dos Estados Unidos, mapeou, em 2006, um Marco Regulatório em seus cinco estados no Golfo do México, incluindo Jurisdições da Agência, Georegulamentações Federais e Estaduais. Eles criaram um Atlas Legislativo com dados geoespaciais e não geoespaciais e criaram uma Matriz de Inventário e Caracterização. O inventário final e caracterização inventariados têm 148 regulamentos; cinco Inventários amplos e 27 sub-elementos. Esses resultados foram úteis para atribuir segurança jurídica às atividades marinhas naquele país e compreender componentes geoespaciais, como, por exemplo: ver as leis costeiras e oceânicas em relação aos recursos físicos, biológicos e socioeconômicos da região, Identificar leis e jurisdições de agências em um local específico, baixar dados e conectar-se diretamente aos dados através de GIS de desktop e componentes não geoespaciais.
As experiências acima indicam a Georegulação como a maneira mais eficaz de fornecer conselhos sobre esses quadros complexos com a vantagem de ser entregue da mesma forma que outros dados espaciais marinhos. É importante padronizar e modernizar diferentes fontes de direito de maneira a possibilitar sua espacialização para emprego em linguagem geográfica, criando uma “plataforma Geo” contemporânea para obter maior segurança jurídica no território. O PEM pode fornecer a infraestrutura necessária para a Georegulação porque engloba as estruturas de dados, padrões, consistência lógica e práticas de metadados disciplinadas fundamentais para suportar essa informação de alta qualidade.
Em um momento de forte expansão das atividades marítimas, principalmente aquelas voltadas para as eólicas offshore, haverá a imposição de uma releitura da governança do mar. Atos unilaterais, como o chileno ou o desenho da plataforma marítima argentina em ilhas britânicas, pouco ou nada contribuirá para algo que vá além dos arroubos ufanistas. É preciso ladrilhar o mar com políticas públicas que contemplem a Georegulação como algo real, prático e necessário, de forma técnica e sintetizadora dos usos múltiplos do mar.
Luiz Ugeda é presidente da Comissão de Geodireito da OAB/SP, Doutor em Geografia (UnB) e doutorando em Direito (Coimbra), além de CEO da Geodireito.