O Marco Legal das Garantias e seu impacto na regularização fundiária

O recente Marco Legal das Garantias, instituído pela Lei n.º 14.711/2023, já traz seus primeiros resultados para os setores imobiliário, financeiro e de capitais. Este marco legal introduziu ajustes importantes no sistema de garantias, visando uma maior segurança jurídica e eficiência nas transações envolvendo bens como garantia. Práticas de mercado anteriormente complexas em sua formalização contratual passaram a ser simplificadas e mais acessíveis no registro imobiliário, favorecendo a dinâmica de crédito e investimento no país.

Para explicar este funcionamento ao Portal Geocracia, Marc Stalder,* sócio da área Imobiliária do Demarest e mestre em Direito Imobiliário pela Universidade de Illinois em Chicago, nos mostra como a regularização fundiária recebeu um novo impulso sob esse marco legal.

A exigência de um registro mais detalhado e certificado para imóveis, especialmente aqueles utilizados como garantia, fez com que propriedades regularizadas sejam empregadas em transações de garantia, reduzindo os riscos jurídicos e aumentando a transparência no mercado. Essas mudanças, embora desafiadoras, são vistas como fundamentais para o desenvolvimento sustentável do mercado imobiliário e financeiro brasileiro, influenciando diretamente na eficiência e segurança das operações realizadas.

Quais são os principais avanços trazidos pela Lei n.º 14.711/2023, conhecida como o Marco Legal das Garantias, para a indústria imobiliária e os mercados financeiro e de capitais? Como ela pode contribuir para a regularização fundiária no Brasil?

Eu entendo que, de fato, o Marco Legal das Garantias inseriu em nosso sistema jurídico inovações muito importantes, que representam avanços igualmente relevantes no sistema de garantias em nosso país. Essas alterações são pontuais e tocam em diferentes leis, inclusive a Lei dos Registros Públicos.

O contexto do Marco Legal das Garantias ajuda bastante a explicar o que entende ser esses avanços. Assim, de maneira geral o Marco Legal das Garantias tipificou, ou seja, trouxe para o texto legal, práticas de mercado que, por não serem tipificadas demandavam uma construção contratual complexa, além de sofrerem resistência na qualificação registral por parte de muitos registradores.

Due Diligence

Veja que, antes do Marco Legal das Garantias, por exemplo, era bastante comum que um imóvel alienado fiduciariamente em garantia para um credor, fosse alienado em garantia para um segundo credor, inclusive para pagamento da dívida garantida pela primeira alienação fiduciária. Essa segunda alienação fiduciária demandava uma construção contratual que suportasse a sua condição suspensiva. Na prática, essa condição perfeitamente legal no âmbito contratual, quando levada ao registro imobiliário, muitas vezes tinha o seu registro recusado pela falta de previsão legal. Vale dizer que, não obstante ser pacífico que uma promessa de venda e compra, ainda que sujeita a condições suspensivas ou resolutivas pode ter acesso ao registro imobiliário, uma alienação fiduciária em garantia não seguia o mesmo entendimento. Atualmente, por conta do Marco Legal das Garantias, essa discussão tende a acabar.

A mudança do conceito geral fazendo com que a excussão de uma alienação fiduciária em garantia não mais liquide a dívida independentemente do seu resultado (atualmente, essa liquidação se aplica apenas nos financiamentos no âmbito do financiamento habitacional) é um atributo, uma solução para inúmeras operações do mercado imobiliário, financeiro e de capitais. Também, novas regras de execução extrajudicial de alienação fiduciária em garantia, as regras de execução extrajudicial de hipoteca e de alienação fiduciária de bens móveis, a figura do gestor de garantias e muitos outros aspectos tendem a permitir uma nova marcha para as operações nesses mercados, com a previsibilidade que é condição para um ambiente mais previsível e, assim seguro, que, por sua vez, deve contribuir com o mercado de maneira geral. Inclusive, esse contexto pode ser mais um elemento indutor da redução dos custos das operações.

No que se refere a regularização fundiária, há de serem distinguidos os conceitos. Importante termos em mente que as garantias, aprimoradas pelo Marco Legal das Garantias, têm natureza acessória. Quer dizer que existe uma operação principal, um mútuo, empréstimo, por exemplo. Essa operação principal pode ou não contar com uma garantia, que lhe será sempre acessória. Essa garantia, por sua vez, pode ou não ter como objeto um imóvel.

Assim, a condição de regularidade do imóvel a ser objeto de uma garantia é fundamental, é anterior à sua constituição. Matrícula do imóvel com a descrição de seu perímetro em coordenadas georreferenciadas certificada pelo INCRA, conforme o correspondente prazo vinculado à área superficial do imóvel, cadastro completo, inscrição num CAR completo e legítimo, por exemplo, devem ser verificadas antes da constituição da garantia sob pena da garantia não acessar o registro imobiliário. Sem esse acesso mediante o competente ato de registro, a garantia não tem eficácia.

Importante anotar que a constituição de uma garantia não se enquadra em nenhuma das hipóteses que a lei exige o georreferenciamento, o que permite defender que o registro imobiliário de uma garantia deve ocorrer mesmo não tendo o imóvel a sua descrição georreferenciada certificada pelo INCRA. No entanto, pensar na garantia apenas no registro de sua constituição não é correto. Se a garantia tem natureza acessória, é inexorável o fato de que numa hipótese de inadimplemento e excussão da garantia, o imóvel deverá ser alienado em algum momento para levantar os recursos a satisfazerem o crédito inadimplido. Nessa fase, igualmente inexorável o fato de que sem o georreferenciamento essa alienação não poderá acessar o registro, o que retira o imóvel um aspecto fundamental para que seja ele uma boa garantia.

Vale indicar a existência de ações questionando dispositivos do Marco Legal das Garantias, mas me parece que elas não deverão ter o deslinde pretendido, diante do entendimento recente da nossa Suprema Corte validando o processo de execução na alienação fiduciária de imóveis. Os conceitos debatidos são basicamente os mesmos, o que me faz pensar que o resultado de tais ações deverá seguir o mesmo entendimento. Na minha opinião, aliás, um resultado contrário seria desastroso.

Uma explicação adicional me parece importante. Muito se fala em desjudicialização. Eu mesmo já utilizei esse termo nas mesmas circunstâncias, pois o entendimento de que esses processos perante os ofícios de imóveis ou de títulos e documentos retiram do judiciário essa incumbência é natural. No entanto, não é apenas isso. Não me parece se tratar de desjudicialização, mas de uma inversão da judicialização.

Se antes cabia ao credor se valor do judiciário para satisfazer o seu crédito mediante a excussão de uma garantia, creio que hoje o credor dispõe de ferramentas mais eficientes para buscar seu crédito, e caberá ao devedor se valer do judiciário para afastar eventuais excessos. Aliás, vale lembrar que as serventias extrajudiciais são o poder judiciário, a ele estão vinculadas e por ele são supervisionadas.

Como a alienação fiduciária de propriedade superveniente em garantia altera o uso de imóveis em transações financeiras, conforme estabelecido pelo novo Marco Legal das Garantias?

A alienação fiduciária superveniente propicia a utilização do capital inerte dos imóveis, assim entendido aquele valor potencialmente disponível num imóvel já onerado em garantia que, de um lado, teve parte da dívida já paga e, de outro, teve uma valorização.

Para que esse uso seja possível e interessante para os credores, deve ser considerada a necessária presença de regras cruzadas de pagamento antecipado, de assunção da posição de um credor sobre o outro em caso de inadimplemento e outros elementos, todos previstos no Marco Legal das Garantias e passíveis de serem utilizados para permitir a preservação de uma garantia em detrimento de outra, ou o vencimento antecipado de uma na hipótese de inadimplemento da outra, para que os credores envolvidos se beneficiem dessas novas regras.

Nesse contexto, tendo-se que uma, ou quantas forem as alienações fiduciárias supervenientes, será sempre subordinada e dependente da primeira, a adequada avaliação do imóvel é fundamental.

Assim, com a estrutura contratual adequada, creio que a principal alteração no uso dos imóveis compreende uma potencial multiplicidade de garantias ou operações mais seguras de financiamento coexistindo com outras já constituídas.

Qual o papel do agente de garantia no contexto do Marco Legal das Garantias e como sua função é integrada nas operações de garantias?

O agente de garantias é uma figura que em certa medida já existia e era utilizada com frequência em operações sindicalizadas, com vários diferentes credores e vários diferentes imóveis dados em garantia.

A grande alteração compreende a forma de atuação do agente. Antes, eleito pelos credores, agia em nome destes com os poderes de procurador. Agora, passa a agir em nome próprio e o Marco Legal das Garantias deixou em aberto as possibilidades de sua atuação. Desse modo, fundamental regular essa atuação no instrumento de sua contratação.

O agente agirá, por exemplo, como fiscalizador dos ativos onerados, defendendo os interesses dos credores e conduzindo as providências de execução das garantias. Ressalto a importância do contrato a regular essa atuação, adequado ao caso concreto e com limites bem definidos. Por exemplo, a vedação do agente para atuar em algum interesse do devedor, que, apesar de autorização legal, pode representar claro conflito de interesses.

Quais foram as principais exclusões do texto final do Marco Legal das Garantias em relação à versão original do projeto de lei e como essas alterações podem impactar as operações no setor imobiliário e financeiro?

O texto do Marco Legal das Garantias sofreu alterações no curso da tramitação de seu processo legislativo. Tais alterações, aliás, revelam a complexidade desse processo e a necessária discussão a respeito de temas pelo Congresso Nacional para que se alcance o resultado que melhor atenda as demandas da sociedade.

Uma das mudanças debatidas foi a exclusão da permissão para penhora do único imóvel da família, objeto de discussão fervorosa diante dos direitos sociais envolvidos, ainda que suportados os argumentos de direito à moradia pela subestimação da capacidade das pessoas de decidirem entregar o seu único imóvel em garantia.

Outra mudança levou à manutenção do monopólio da Caixa Econômica Federal para a penhora de bens móveis (como joias, relógios, canetas e pratarias), outra norma que chegou a ser derrubada pela Câmara, abrindo esse mercado para permitir a concorrência em penhores para reduzir os custos do crédito. Segue o monopólio.

Monopólio esse que se verifica também na pessoa da Caixa e do Banco do Brasil para o pagamento de professores, sendo esses os únicos autorizados a gerir os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Essas exclusões, no entanto, não me parecem ter retirado a relevância e os avanços merecedores de todos os aplausos trazidos pelo Marco Legal das Garantias. Na minha opinião, mercado aberto, com concorrência, significa melhores condições para todos.

Muito nos perguntam se é possível garantir um imóvel rural que não esteja georreferenciado. O que se pode afirmar sobre a segurança jurídica produzida por um georreferenciamento de imóvel rural e todo este mecanismo destinado as garantias em um ambiente em que o BACEN e o BNDES têm tomado como pressuposto de financiamento o georreferenciamento?

O georreferenciamento representa uma forma de descrição do imóvel rural. Essa descrição em coordenadas georreferenciadas deve ser certificada pelo INCRA e, atualmente, qualquer imóvel rural com 25 hectares ou menos precisa ter essa descrição georreferenciada certificada assentada no registro imobiliário do imóvel. A penalidade é o impedimento de qualquer ato de registro nos casos de alienação, remembramento, desmembramento ou alteração de área do imóvel.

Como já delineado acima, nenhum desses casos representa impedimento para o registro de uma garantia. No entanto, do que valeria uma garantia que não possa levar o imóvel a ser alienado? Qual credor se interessaria no leilão de um imóvel que, se adquirido, não terá o seu título aquisitivo registrado enquanto não averbada na matrícula do imóvel a descrição georreferenciada certificada pelo INCRA, se a área for de 25 hectares ou menos? Em resumo, defendo sempre que um imóvel regular, assim entendido aquele que tem seu cadastro fiscal, seu cadastro ambiental, sua descrição e as demais informações coerentemente com as exigências legais, tem mais valor em inúmeras situações. Essa situação pode ser a mais clara delas.

* Marc Stalder é sócio da área Imobiliária do Demarest, Marc Stalder é mestre em Direito Imobiliário pela Universidade de Illinois em Chicago. Especialista em Direito Registral e em Direito Empresarial. Membro da MDDI Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Diretor institucional da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral. Membro do IBRADIM – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Docente em cursos de curta duração e de especialização nas áreas de Direito Imobiliário, Direito Notarial e Registral.

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