“Precisamos de um ‘maestro’ federal na gestão de terras”

Gestão de terras - Regis Bueno
Regis Bueno, presidente da Geovector Engenharia Geomática – arquivo pessoal

Uma das maiores autoridades no país em Geodésia Geométrica e Agrimensura, Regis Bueno é especialista em monitoração geodésica de estruturas, gestão de terras, regularização fundiária, tecnologia de Sistema Global de Navegação por Satélite (GNSS, na sigla em inglês), georreferenciamento urbano e rural, sensoriamento remoto, cadastro e fotogrametria. Em entrevista ao Geocracia, ele vê com bons olhos iniciativas como o Sinter (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais) e o Reurb (Regularização Fundiária Urbana), sobretudo à luz de cases de sucesso como o Sigef (Sistema de Gestão Fundiária, do Incra). Mas o atual presidente da Geovector Engenharia Geomática revela sua preocupação com a falta de regulação cartográfica que deixa o país sem um “maestro federal” nessa matéria. E teme que isso traga consequências ainda piores, como ficar para trás na corrida tecnológica da Era dos Dados: “Na medida em que usamos a nossa imagem [de satélite] do ponto de vista de outros e dependemos de suas tecnologias, tal como o GNSS, estamos perdendo este trem”.

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

A engenharia de agrimensura é fundamental para a Geodésia e para o estabelecimento de um cadastro imobiliário confiável. Atualmente, há estimativas de que o Brasil dos cartórios seja cerca de uma Minas Gerais maior que o Brasil real. Como podemos reverter essa situação?

Esta é uma constatação importante, pois nos custa muito como nação. Com razão, no contexto da Geodésia que se preocupa com o posicionamento, a Agrimensura tem muita importância, não apenas pela etimologia das duas palavras, mas porque a Agrimensura se preocupa com o cadastro territorial. A base deste é a perfeita identificação da parcela, que se obtém pelos princípios da Geodésia. O Cadastro, por sua vez, tem um papel chave na questão da administração da terra e da busca por sustentabilidade. O Brasil, por sua trajetória de uso e ocupação da terra, demorou muito para começar a identificar e especializar pela Geodésia a propriedade imóvel que chega ao registro. Só começamos regularmente após novembro de 2003, quando tivemos as normas prontas, e, assim mesmo, apenas para os imóveis rurais. Esta demora em aderir ao posicionamento geodésico padronizado como a base das medições e descrições dos imóveis nos conduziu a uma situação confusa e a uma sorte de circunstâncias como a grilagem e a sobreposição de títulos de imóveis descritos de diferentes formas e de difícil percepção de sua espacialização. Esta situação vem sendo revertida com o instituto do georreferenciamento. A Agrimensura, portanto, tem este importante papel a desempenhar e pode fazê-lo de várias formas, pois variadas são as tecnologias à nossa disposição hoje e suas aptidões e capacidades de produção.

Os países mais avançados em termos de governança de terras estão aprimorando seus sistemas de cadastro imobiliário, criando plataformas on-line que permitem ao próprio dono fazer o georreferenciamento de sua propriedade. Esse é o caminho para o Brasil?

Este é outro aspecto importante para evoluirmos mais depressa. O cadastro evolui e acompanha a sociedade a que deve servir. Ele é uma resultante de forças tecnológicas, sociopolíticas e jurídicas próprias de cada nação. Por outro lado, é muito temerário generalizar ou transpor soluções sem observar esses aspectos. O Brasil possui um intrincado conjunto de direitos, deveres e responsabilidades quanto à propriedade e ao uso da terra, com implicações sobre a propriedade. Por razões como essas, a espacialização do bem deve ser realizada de forma adequada, até mesmo para preservar o valor investido pelo proprietário e sociedade. Contudo, é inegável que procedimentos podem ser racionalizados e adequados. Eu gosto de citar o caso do Sigef como um bom exemplo do que somos capazes de fazer para buscar essa governança, pois já são mais de 233 milhões de hectares certificados neste sistema, que somados ao antigo SNCI [Sistema Nacional de Certificação de Imóveis], resultam em mais de 351 milhões de imóveis públicos e privados certificados. Não é pouco, mas temos ainda muito que percorrer, porque somos um grande território. Países dessas dimensões consumiram muitas décadas num padrão tecnológico anterior. A racionalização dentro de padrões adequados é um imperativo, bem como torna mais leve a questão cadastro e registro. Por exemplo, há tecnologias de levantamento em massa e de sistemas de informação, como o Sigef, capazes de acelerar o processo. Por outro lado, devemos evitar erros do passado, quando se abdicou da espacialização geodésica padronizada, levando-nos a ineficiência, estagnação.

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Nesse contexto, como avalia iniciativas como o Sinter e os projetos de Reurb?

Ambos, Sinter e Reurb, são importantes instituições que poderão fomentar e alimentar o cadastro urbano e a gestão das terras. Nos dois casos, há aspectos fiscais envolvidos, mas há também transparência, cidadania, planejamento urbano e prosperidade, entre outros aspectos. Vejo neles potenciais indutores do cadastro e da gestão de terras, pois um pode fomentar gerando uma demanda por cadastros urbanos, já que receberá dados do Sigef; e o outro tem o potencial de produzir dados padronizados que podem contribuir com o cadastro e complementar o primeiro. O Sinter necessita ainda de melhor organizar e padronizar a questão dos dados que receberá do meio urbano, representando mais um passo em direção ao saneamento fundiário urbano, como se promoveu no rural com a Lei n. 10.267, de 2001. Sopesados os demais aspectos de gestão de terras brasileiras, sente-se a necessidade de um órgão coordenador no nível federal. Como eu costumo citar precisamos de um maestro; uma entidade que nos faça aprimorar, dar de nós o melhor e orquestrar uma performance de excelência.

Os avanços tecnológicos têm proporcionado uma verdadeira revolução nas técnicas de Agrimensura e Geodésia, como drones, câmeras digitais, apps e outras ferramentas on-line, propiciando o surgimento, no mundo todo, de um sem-número de startups tecnológicas que geram bilhões em receitas e diversas oportunidades de empregos. No entanto, nossa regulamentação cartográfica está defasada, presa ainda a um vazio regulatório que vem desde a promulgação da Constituição de 88. Corremos o risco de ficar para trás e perder o trem da Era dos Dados?

Embora tenhamos centros como o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), produzindo conhecimento e sistemas de observação da terra; o IBGE, com todo o avanço na questão de infraestrutura geodésica e cartografia, e a Diretoria de Serviço Geográfico do Exército (DSG), a Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha DHN e o Instituto de Ciências Agrárias (ICA), voltados à produção de informação espacial nas três forças, nossa produção de dados de cartografia sistematizada ainda é pouco para nossas necessidades atuais. A informação cartográfica oficial é primordial; é a base para muitas atividades de um país. Por exemplo, há regiões que, no decorrer das últimas três décadas, experimentaram um desenvolvimento acelerado, mas contam com mapeamentos em pequena escala, baseados em recobrimento aéreo da década de 1960. Mapas antigos têm sua importância, mas é necessário acompanhar e modelar as evoluções do território. Dispor destas informações oficiais, atuais e adequadamente detalhadas na era dos dados é um imperativo. Temos acesso a uma representação do território mais atualizada, mas de outrem. Os objetivos são diversos da nação brasileira. Esta outra acaba preenchendo a lacuna, sendo incorporada por projetos, até mesmo por municípios e outras instâncias. Neste sentido, na medida em que usamos a nossa imagem do ponto de vista de outros e dependemos de suas tecnologias, tal como o GNSS, estamos perdendo este trem. Precisamos fomentar nossas capacidades. Por outro lado, parece-me que o conceito de infraestrutura de dados espaciais oficializado pela INDE (Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais) vem estimulando os governos estaduais na produção de dados padronizados e acessíveis. Mas a INDE tem um viés para escalas menores. Os municípios poderiam ser efetivamente estimulados a produzir informações mais sistematizadas e padronizadas em maiores escalas para o cadastro urbano e planejamento. Empreende-se em mapeamentos com objetivos majoritariamente fiscais que acabam sendo subutilizados e não têm capacidade de se integrar aos conceitos da INDE e de cadastro territorial. São necessárias políticas mais apropriadas, que estimulem a boa produção, o uso racional e o bom aproveitamento dos dados produzidos.

Existem iniciativas junto a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) para se padronizar algumas frentes de Cartografia e de Geodésia. Quais serão suas vantagens para o país, suas principais propostas e seu atual estágio?

A padronização de procedimentos em Agrimensura e Cartografia é extremamente importante para um país, pois ajuda a produzir geoinformação com a qualidade necessária ao cadastro territorial, agricultura, projetos e obras de engenharia, entre outros. Veja o caso das normas ISO (International Organization for Standardization) e ASTM (American Society for Testing and Materials), por exemplo. Elas permitem balizar procedimentos e mantêm liberdade científica e tecnológica para o desempenho das atividades de cada caso. No âmbito da ABNT, está o Comitê Brasileiro da Construção Civil (ABNT/CB-02). Anexo, temos a Comissão de Estudo de Serviços Topográficos (CE-02:133.17). Esta comissão vem, desde o inicio da década de 1990, se organizando e produzindo normas no âmbito da Agrimensura e Cartografia. Com a questão pandêmica, passamos de reuniões presencias, na Escola Politécnica da USP, para virtuais quinzenais; adquirimos maior celeridade, capacidade participativa e produtiva, com especialistas de outras regiões do País. Avançamos com celeridade. Estamos revisando várias normas. A primeira a ser concluída é a norma geral de topografia, a NBR 13.133. A 14.166, sobre redes de referência (geodésica) cadastral municipal, acaba entrar em vigor. Dia 11/01, enviamos o texto sobre levantamento cadastral para registro público (antiga NBR14645-2) à consulta nacional. Tratamos ainda de outras em revisão e novas. Porém, o uso dessas normas ainda carece de melhores níveis de difusão e adesão entre os potenciais usuários. Como profissional e empresário, conjuntamente com grande parte de meus pares, vemos muitos projetos de engenharia recebendo dados geodésicos e topográficos – informações básicas de grande relevância nos projetos e obras – com baixo nível de qualidade. Geoinformações de baixa qualidade causam impactos negativos, com custos muito superiores aos daquelas produzidas com a adequada qualidade. A qualidade e eficiência dependem do conhecimento, primariamente. É necessário mudar esta mentalidade. Geoinformação fidedigna é um ativo, não um passivo.

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