Sales Carvalho: Se não temos regularização fundiária, não temos segurança jurídica

A Regularização Fundiária no Brasil, tema antes restrito aos círculos jurídicos e territoriais, representa hoje um dos maiores desafios para profissionais do direito imobiliário bem como dos engenheiros, urbanistas e ambientalistas.

Falar de Regularização Fundiária é tratar do ordenamento territorial e o desenvolvimento social, temas que por sua natureza já trazem intricados processos envolvendo aspectos legais, sociais e ambientais, mas que podem ser auxiliados com instrumentos como a Due Diligence, unindo expertise jurídica e regulatória. A necessidade de titularizar terras ocupadas, seja em áreas urbanas ou rurais, pressupõe uma abordagem que vá além da mera emissão de títulos de propriedade, demandando a implementação de infraestrutura básica e a garantia de condições dignas de habitabilidade.

Due Diligence

A obra “Glossário da Terra” do Eng. Sales Vieira Carvalho*, CEO do Instituto de Governança Fundiária do Brasil, lançada no último ano, emerge como um recurso valioso ao desvendar a terminologia técnica que permeia a regularização fundiária, buscando ser uma obra de referência aos profissionais da área e àqueles que buscam compreender as nuances deste processo no Brasil.

Ao convidarmos o Prof. Me. Sales Carvalho para esta entrevista, buscamos explorar sua perspectiva sobre os avanços e desafios persistentes na regularização fundiária brasileira, trazendo a visão de mais de 30 anos de experiência sobre as potencialidades e obstáculos no caminho para uma gestão territorial mais justa e eficiente, que reconheça a importância de uma abordagem integrada e inclusiva no tratamento da questão fundiária no Brasil.

Sobre a Regularização Fundiária no Brasil, como esta questão foi tratada pelo país em sua história, com destaque nos últimos 50 anos?

A questão da Regularização Fundiária no Brasil tem sido um desafio contínuo e multifacetado, refletindo a complexidade socioeconômica e territorial do país. A regularização fundiária no Brasil, historicamente arraigada desde a era colonial, ganhou contornos distintos e progressivos nos últimos 50 anos, marcados por intensa urbanização e o surgimento de assentamentos irregulares nas décadas de 1970 e 1980, onde o foco era a legalização de ocupações para controlar o crescimento desordenado urbano, priorizando a segurança de posse com menor atenção às condições urbanísticas.

A Constituição de 1988 trouxe uma mudança paradigmática ao enfatizar o direito à moradia e a função social da propriedade, impulsionando políticas públicas integradas para a regularização, que abarcam desde a legalização da posse até a promoção de melhorias habitacionais e acesso a serviços básicos.

Com o Estatuto da Cidade em 2001, o Brasil reforçou o arcabouço legal para a política urbana, estabelecendo diretrizes para a gestão democrática das cidades e a necessidade de planos diretores que incluam a regularização fundiária. A lei de 2017 acelerou os processos de regularização fundiária urbana e rural, focando na inclusão social e moradia digna.

Apesar dos avanços legislativos e políticos, persistem desafios como resistência à implementação das leis, falta de recursos e dificuldades em áreas remotas, exigindo compromisso contínuo com inovação, financiamento e participação social para promover justiça social, direito à cidade e desenvolvimento sustentável.

Quais são os maiores desafios que você identificou na implementação efetiva da Regularização Fundiária no Brasil, incluindo sua ativa participação no sistema CONFEA/CREA e como o seu livro contribui para superá-los?

A complexidade jurídica e normativa destaca-se como o maior desafio, impulsionado pelas sobreposições e conflitos legais que complicam e prolongam o processo; esta realidade é abordada em “Glossário da Terra: Dicionário da Regularização Fundiária”, que visa simplificar a compreensão das legislações aplicáveis.

Outro desafio identificado é o acesso limitado à informação compreensível sobre regularização, uma barreira que o livro procura eliminar, democratizando o conhecimento para facilitar a inclusão e participação no processo. A capacitação técnica dos profissionais envolvidos é também crucial, enfatizada pela experiência no sistema CONFEA/CREA, onde o livro atua como ferramenta educacional, elevando o nível de conhecimento técnico e legal no setor.

Além disso, a ausência de coordenação e integração entre entidades envolvidas frequentemente leva a redundâncias e ineficiências, uma lacuna que a publicação busca preencher ao estabelecer um vocabulário comum que promove melhor comunicação e colaboração entre diferentes partes interessadas.

Assim, “Glossário da Terra” emerge como uma contribuição significativa para superar esses obstáculos, capacitando profissionais, estudantes e comunidades através de conhecimento acessível, incentivando uma abordagem mais eficiente e inclusiva na regularização fundiária no Brasil.

Como a Regularização Fundiária pode transformar a realidade social das comunidades mais afetadas por conflitos de posse no Brasil?

A Regularização Fundiária é um dos alicerces da Justiça Social, desenvolvimento sustentável e inclusão em várias frentes. Mas, um dos principais destaques, é proporcionar segurança jurídica e reduzir conflitos ao conferir títulos de propriedade, criando um ambiente estável para planejamento e investimento familiar.

O reconhecimento oficial do Estado por meio da regularização facilita o acesso a serviços públicos essenciais e infraestrutura, melhorando significativamente as condições de vida, além de incentivar investimentos em propriedades, possibilitando o uso destas como garantia para créditos, estimulando o desenvolvimento econômico e social.

Este processo também é fundamental para a inclusão social, reconhecendo direitos de populações marginalizadas e contribuindo para a redução das desigualdades e, tais processos participativos de regularização, estimulam a organização comunitária e o empoderamento, fortalecendo o tecido social e promovendo a cidadania ativa.

Portanto, sempre pontuo que temos seis frentes de transformação: i. Segurança Jurídica e Redução de Conflitos; ii. Acesso a Serviços Públicos e Infraestrutura; iii. Estímulo ao Desenvolvimento Econômico e Social; iv. Promoção da Inclusão Social; v. Fortalecimento da Gestão Urbana e do Planejamento Territorial; vi. Participação Comunitária e Empoderamento.

De que forma a Regularização Fundiária se intersecta com outras áreas como advocacy, meio ambiente e desenvolvimento sustentável?

No âmbito do advocacy e direitos humanos, a regularização é essencial na defesa do direito à moradia digna e à segurança da posse, contribuindo para a cidadania plena. Organizações de advocacy impulsionam a conscientização, mobilização comunitária e a advocacia por políticas que assegurem direitos fundiários, influenciando a formulação de legislações que se alinham aos direitos humanos e promovem a inclusão e justiça fundiária.

No que concerne ao meio ambiente, a regularização é crucial para a gestão ambiental eficaz e a conservação de recursos, prevenindo o desmatamento e a degradação através da definição clara dos limites territoriais e uso da terra. Isso favorece práticas sustentáveis e a conservação da biodiversidade, além de respaldar comunidades tradicionais e povos indígenas na proteção de modos de vida sustentáveis e na conservação ambiental.

No espectro do desenvolvimento sustentável, a regularização fundiária promove o equilíbrio entre crescimento econômico, justiça social e proteção ambiental. Por meio da segurança jurídica de posse, estimula-se o desenvolvimento econômico local e a inclusão social, assegurando que o desenvolvimento ocorra de maneira sustentável e alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Portanto, a regularização fundiária emerge como facilitadora para alcançar metas de desenvolvimento sustentável, exigindo políticas integradas que reconheçam suas implicações amplas para a sociedade e o planeta, fomentando práticas que sejam ao mesmo tempo ambientalmente responsáveis e socialmente inclusivas.

Com base nas tendências atuais e nos insights de seu livro, quais são as suas projeções para o futuro da Regularização Fundiária no Brasil?

Apontados em meu livro e outros trabalhos, tenho apresentado uma trajetória de contínua evolução, enfrentando desafios enquanto se abrem oportunidades significativas para resolver questões fundiárias. Vou citar cinco delas que também sintetizam um pouco desta entrevista:

A integração de tecnologias digitais e os Sistemas de Informação Geográfica tornam os processos mais eficientes e acessíveis, exemplificado pela digitalização de registros e o uso de drones para mapeamento, que facilitará o acesso à informação e agilizará procedimentos.

A sustentabilidade e resiliência climática ganharão destaque, com a regularização fundiária emergindo como ferramenta vital para uso sustentável da terra e conservação ambiental, incluindo critérios ambientais em práticas de regularização.

Espera-se uma abordagem mais integrada e multissetorial, envolvendo diversos setores e níveis de governo, alinhando políticas fundiárias a estratégias amplas de desenvolvimento e planejamento territorial.

A participação comunitária ativa será crucial, valorizando o conhecimento local e garantindo direitos das comunidades no processo, promovendo práticas de governança participativa.

Antecipa-se a reforma legal e institucional, atualizando legislações e criando normas que facilitem a regularização, promovendo justiça social e desenvolvimento sustentável.

O futuro da regularização fundiária dependerá da adaptação a essas tendências, assegurando que contribua efetivamente para o desenvolvimento justo e sustentável do Brasil.

* SALES VIEIRA CARVALHO Francisco de Sales Vieira de Carvalho, formado em Engenharia de Agrimensura pela Universidade Federal do Piauí e Mestre em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina, atualmente é Coordenador do Curso de Engenharia de Agrimensura e Cartográfica na FEASP e Doutorando em Ciências Ambientais pela UNESP. Com expertise em Ciências Geodésicas e especialização em Cadastro Técnico Multifinalitário, sua carreira abrange funções significativas como Conselheiro e Coordenador na CEEA do CREA/SP, Coordenador Nacional das CCEAGRI no CONFEA, e Coordenador da CEAP no CREA/SP. Sales acumula mais de 25 anos de atuação em desenvolvimento agrário na ITESP, sendo atualmente Diretor-Presidente do IGFB, Presidente da APEAESP e conselheiro do CREA/SP, consolidando seu papel chave na Engenharia de Agrimensura e Governança Fundiária no Brasil.

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