Sem geoinformação de qualidade, sem políticas públicas ambientais

A relação entre homem e terra ficará cada vez mais permeada por conhecimentos geográficos, sendo algo inexorável. Para José Irivaldo Alves de Oliveira Silva,* Professor Associado da Universidade Federal de Campina Grande, com profundo conhecimento sobre questões voltadas ao sertão e ao desenvolvimento regional com repercussões ambientais, as decisões judiciais precisarão estar cada vez mais espacializadas, sendo fonte para a construção de mapas que ajudarão no aprofundamento e solução de fenômenos.

Nesta entrevista exclusiva para a Geocracia, José Irivaldo apresenta e discute a interseção entre a geoinformação e as questões ambientais, temas que permeiam suas pesquisas e contribuições significativas para o entendimento e enfrentamento de desafios socioambientais. Ele pôde discutir como a geoinformação em suas pesquisas tem apoiado projetos e políticas sobre segurança hídrica ecológica, conservação de recursos naturais no semiárido e desenvolvimento regional, e como esta é base para a compreensão e solução de problemas complexos.

Due Diligence

Em relação a temas como a “cidadania” hídrica, como a geoinformação tem sido utilizada para mapear e destacar as desigualdades de poder nas situações de conflito relacionadas à água? É possível apontar jurisprudências neste sentido?

Excelente questionamento. A água – especificamente o acesso e seus múltiplos usos – será nosso grande dilema nos próximos anos; quem terá acesso, como terá e em que quantidade são questões fundamentais para o futuro da humanidade.

É importante destacar que a Geografia da água se confunde com a Geografia Urbana e da nossa Geografia Rural. Vou explicar: cada vez mais o que chamo de Geografia dos Mananciais, nossas fontes de água, será basilar para o planejamento e para possibilitar seu acesso democrático, já que, como bem comum, assim ele deve permanecer. 

Porém, diante do contexto planetário não sei se esse “ouro azul” em um futuro, não tão distante, será efetivamente um bem público, pois já presenciamos a privatização e “comoditização” desse recurso sem um controle ou regulação efetiva do Estado. Destaque-se que a regulação adequada é estratégica para a garantia de direitos, e essa não dispensa de forma alguma o conhecimento do território hidrossocial

Este conceito é fundamental para compreender que a água flui pelo território marcado por desigualdades de poder, que flui por caminhos construídos conforme os interesses de grupos da sociedade. Como afirmei anteriormente, o controle sobre o acesso à água e sua distribuição torna-se cada vez mais estratégico. Penso que uma primeira tarefa do poder público é cadastrar (ou mapear, popularmente falando) nossas fontes de água, pois não se cuida – e gere – o que não se conhece, considerando todos os potenciais conflitos existentes. 

O tema é novo, porém o trabalho realizado por grupos de pesquisa nas universidades e entidades envolvidas com o Geodireito ajudam a tornar o tema mais conhecido: a maioria absoluta da jurisprudência envolvendo os recursos hídricos, traz especificamente a questão do abastecimento público e a cobrança bem como a interrupção indevida do fornecimento. Uma das jurisprudências que gostaria de citar como aproximação considerável com a Geoinformação é a que se refere à delimitação das faixas não edificáveis considerando as margens dos cursos de água, especificamente em trechos de áreas urbanas já consolidadas: 

RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA A ESPEITO DA INCIDÊNCIA DO ART. 4º, I, DA LEI N. 12.651/2012 (NOVO CÓDIGO FLORESTAL) OU DO ART. 4º, CAPUT, III, DA LEI N. 6.766/1979 (LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO). DELIMITAÇÃO DA EXTENSÃO DA FAIXA NÃO EDIFICÁVEL A PARTIR DAS MARGENS DE CURSOS D’ÁGUA NATURAIS EM TRECHOS CARACTERIZADOS COMO ÁREA URBANA CONSOLIDADA. (REsp 1770760 / SC RECURSO ESPECIAL – 2018/0263124-2 – STJ)

A edificação às margens dos cursos de água precisa de enfrentamento nas cidades brasileiras, sendo a geoinformação essencial no processo de reconhecimento dessas áreas e na apresentação de soluções, muito antes de sensores e parafernálias eletrônicas das chamadas Cidades Inteligentes.

Diante das rápidas mudanças tecnológicas, em um cenário de Transformação Digital, como você enxerga o futuro da geoinformação aplicada às questões ambientais, incluindo temas relacionados ao tombamento e Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs)? Existem casos emblemáticos que merecem destaque?

Sem dúvidas, é estratégico. O mapeamento das zonas de preservação no território nacional deve ser uma tarefa nas agendas governamentais como relevante para o desenho de políticas públicas ambientais, incluindo o uso e ocupação do solo. O conhecimento do Território é elemento-chave para a gestão pública em multinível conseguir avançar na preservação da natureza. 

Isso inclui obviamente a compreensão e conhecimento do nosso patrimônio histórico, bem como as iniciativas dos produtores e agricultores que decidem preservar parte de sua propriedade transformando-a em reserva particular do patrimônio natural.

Um caso emblemático foram os estudos, que envolveram técnicas de Geoprocessamento, do patrimônio histórico de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, na Bahia, que possibilitou o levantamento das zonas históricas, dando origem ao Plano de preservação e revitalização. 

Um dos requisitos para criação de uma RPPN é seu georreferenciamento e cadastro territorial, fundamental para o monitoramento desses territórios; o ICMbio possui uma Infraestrutura de Dados Espaciais das unidades de conservação federais, porém falta ser uma realidade em estados e municípios, além da necessidade de atualização e maior detalhamento escalar.

Na conservação de recursos naturais no semiárido, de que maneira a geoinformação é utilizada para mapear e monitorar áreas de importância ambiental?

As Universidades públicas têm trabalhado com a geoinformação por meio do mapeamento das espécies existentes, da desertificação do nosso semiárido, bem como dos recursos hídricos existentes. Além dessa possibilidade, também é factível encontrar a geoinformação produzida sobre o solo do semiárido, tendo como unidade de análise as bacias hidrográficas, em que muitas sofrem da escassez hídrica. 

Um exemplo a ser citado é a Embrapa, que possui um laboratório no semiárido que produz muitas informações por meio de Cartografia Digital entre outras técnicas, possibilitando um conjunto de geoinformações relevantes para o conhecimento aprofundado do semiárido. Além disso, a geoinformação auxilia no monitoramento da expansão da zona semiárida, inclusive na presença de zonas áridas já consolidadas no Nordeste. 

O Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélite (LAPIS) da Universidade Federal de Alagoas, tem se constituído em referência no estudo do avanço da desertificação no semiárido por meio da produção de geoinformação, que ajuda no direcionamento de políticas públicas diversas nesse território, especialmente as ambientais correlacionadas com as políticas públicas hídricas. Esse mapeamento auxilia sobremodo para o desenho de políticas públicas mais assertivas, bem como monitora de que modo as dinâmicas climáticas e antrópicas estão modificando drasticamente o território.

E no saneamento, como podemos mensurar o impacto espacial das concessões que se proliferam?

Penso que o mapeamento dessas concessões é o primeiro passo para que isso ocorra: como mensurar se não temos o mapeamento, dados básicos territoriais? O novo marco do saneamento, a lei 14.026/2020 estabelece parâmetros que incentivam a concessão do saneamento no país, o que demanda um cuidado especial nos dados e informações necessários à tomada de decisão. 

Realizar estudos de médio e longo prazos para verificar o impacto dessas concessões implica na produção de mapas para que possamos comparar esses impactos, ou seja, se o saneamento nas suas múltiplas facetas está sendo concretizado nos territórios estudados. Essa mensuração do impacto geográfico por meio do monitoramento da melhoria da qualidade do saneamento será fundamental para se avaliar o cumprimento das metas, essencial à regulação dos serviços que compõem o saneamento.

Como você avalia a perspectiva de se usar cada vez mais conhecimentos geográficos no Direito em um horizonte de dez anos?

No contexto atual, o horizonte de 10 anos pode apresentar mudanças cada vez maiores e mais rápidas. Esse tempo parece pouco, mas representa muito para os avanços tecnológicos da atual quadra temporal da humanidade. Penso que a relação entre homem e terra ficará cada vez mais permeada por conhecimentos geográficos. É algo que é inexorável. 

Agora, no campo do Jurídico isso dependerá de um investimento cada vez maior dos tribunais na capacitação de seus quadros, bem como na incorporação de cargos que atuem nesse campo da geografia. As decisões judiciais precisarão, a meu ver, estar cada vez mais espacializadas, bem como elas serão fonte para a construção de mapas que ajudarão no aprofundamento e solução de fenômenos. O conhecimento de onde os conflitos ocorrem pode ajudar a compreender a dinâmica existente e possíveis soluções.

* JOSÉ IRIVALDO ALVES DE OLIVEIRA SILVA é Pós-Doutor em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina, no Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Sociedade de Risco, GPDA. Pós-Doutorado em Desenvolvimento Regional. Doutor em Ciências Sociais. Doutorando em Direito e Desenvolvimento. Pesquisador de Produtividade do CNPq, nível 2. Mestre em Sociologia. Especialista em Gestão de Organizações Públicas. Especialista em Direito Empresarial. Graduado em Ciências Jurídicas. Exerceu o cargo de Analista Judiciário do Tribunal de Justiça da Paraíba por oito anos. Professor Titular do Curso de Gestão Pública da Unidade Acadêmica de Gestão Pública da Universidade Federal de Campina Grande. É pesquisador com ênfase em conflitos ambientais, meio ambiente, sociedade de risco, legislação ambiental, desenvolvimento sustentável, políticas públicas relacionadas ao acesso à água e saneamento. É membro ativo de diversos grupos de pesquisa. É membro da rede de pesquisa WATERLAT, http://www.waterlat.org/Members.html#brazil. Pesquisador da Rede JUST-Side (Programa Ibero-Americano de Ciência e Tecnologia). Membro da Associação Latino-Americana de Sociologia

SEM GEOINFORMAÇÃO DE QUALIDADE, ESTAMOS FADADOS AO FRACASO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS

Entrevista: Abimael Cereda Junior (MtB 91827/SP)

Fotografia e mini-cv: Enviados pelo entrevistado

Edição: Abimael Cereda Junior e Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches

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