A Lei n. 12.651 de 2012, que instituiu o Código Florestal Brasileiro, trouxe à discussão – e implementação – o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA) como pilares para a gestão ambiental das propriedades rurais. Buscando equilibrar a preservação ambiental e as atividades agropecuárias, estes instrumentos deixam claro a importância estratégica do agronegócio para o Brasil além da necessidade da conservação e boas práticas ambientais, visando a chamada Sustentabilidade.
No entanto, as dimensões de análise são mais complexas e devem ser tratadas tanto do ponto de vista técnico, com a digitalização e o uso de georreferenciamento, como do ponto de vista territorial, já que muitos questionamentos jurídicos têm sido levantados e impactam diretamente a vida dos proprietários rurais e, ao mesmo tempo, não trazem uma agenda positiva às discussões ambientais, tampouco sua efetividade para além dos discursos.
Tais enfrentamentos ao Código Florestal, presentes desde 2012 especialmente quanto à compensação ambiental e definição de áreas de preservação, gera indecisões e cria uma atmosfera de incerteza e insegurança jurídica, afetando a regularização dos imóveis rurais e desestimulando a adesão ao CAR. A entrevista exclusiva da Geocracia com o Advogado e Geógrafo Bruno Drumond Gruppi* lança luz sobre essas complexidades, discutindo as expectativas em relação ao CAR como ferramenta de regularização fundiária, seu papel no ordenamento territorial brasileiro e mais.
Como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Programa de Regularização Ambiental (PRA) estabelecidos pela Lei n. 12.651, de 2012, visam apoiar a sustentabilidade e conservação ambiental nas propriedades rurais do Brasil? Qual a função do georreferenciamento neste contexto?
O Cadastro Ambiental Rural e o Programa de Regularização Ambiental foram criados pela Lei n. 12.651, de 2012, atual Código Florestal. O Código Florestal tem objetivo o desenvolvimento sustentável, no qual se reafirma a “importância da função estratégica da atividade agropecuária e do papel das florestas e demais formas de vegetação nativa na sustentabilidade, no crescimento econômico, na melhoria da qualidade de vida da população brasileira e na presença do País nos mercados nacional e internacional de alimentos e bioenergia”; (art. 1º-A, parágrafo único, II, Código Florestal).
Diante disso, o Cadastro Ambiental Rural e o Programa de Regularização Ambiental são importantes instrumentos para o objetivo do desenvolvimento sustentável, pois promovem a regularização ambiental dos imóveis rurais, considerando a relevância do agronegócio.
O CAR é um registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais. Por sua vez, o PRA é um conjunto de ações ou iniciativas estabelecidas por cada Estado a serem desenvolvidas por proprietários e posseiros rurais com o objetivo de adequar e promover a regularização ambiental dos imóveis rurais, nos termos do Código Florestal.
Quais foram as principais inquietações jurídicas levantadas desde a implementação do Código Florestal, e como elas impactaram a segurança jurídica dos proprietários rurais com passivos ambientais?
O Código Florestal (Lei n. 12.651) foi publicado em 25 de maio de 2012. Meses depois, em 18 de janeiro de 2013, foram protocoladas as ações diretas de inconstitucionalidades no Supremo Tribunal Federal sobre o fundamento de inconstitucionalidade da Lei. Em resumo, a Procuradoria-Geral da República entendeu que a forma proposta pelo Código Florestal de proteção da vegetação nativa não atenderia ao princípio do desenvolvimento sustentável, previsto no art. 225 da Constituição Federal. Alegou uma possível redução da proteção da vegetação nativa e, por isso, se questionou, por exemplo, a possibilidade do cômputo da área de preservação permanente no percentual exigido da área de reserva legal (art. 15); o requisito de equivalência de bioma para a compensação ambiental (art. 66, § 6º, Lei n. 12.651, de 2012) etc.
Ocorre que mais de 11 anos depois dos protocolos das ações, o julgamento ainda não terminou e não há previsão para terminar. Permanece ainda a indefinição sobre qual requisito adotar, bioma ou identidade ecológica, para realizar a compensação ambiental de área de reserva legal. A depender do julgamento das ações diretas de inconstitucionalidades pelo Supremo Tribunal Federal, o sistema do CAR e os Programas de Regularização Ambiental, incluindo leis estaduais, decretos, resoluções e portarias, deverão ser alterados.
O Cadastro Ambiental Rural e o Programa de Regularização Ambiental não estão totalmente implementados pelos Estados. De acordo com o último Boletim Informativo do CAR – outubro/23, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática, apenas 5% das propriedades rurais inscritas no CAR do Estado de São Paulo foram aprovadas pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento, responsável pela gestão do CAR.
Ou seja, um possuidor ou proprietário rural não tem a garantia que o seu pedido de regularização ambiental será concluído pelo órgão competente. Tampouco, há um prazo para a análise do seu pedido de regularização ambiental feito pelo CAR. Por óbvio que essa situação gera muita insegurança jurídica e desestimula uma regularização ambiental efetiva pelos proprietários rurais.
Como o conceito de identidade ecológica e sua relação com as modalidades de compensação da reserva legal influenciam a regularização ambiental de imóveis rurais?
O Código Florestal estabeleceu como requisito para a compensação ambiental da área de reserva legal a equivalência de bioma entre a área compensatória e a área compensada (art. 66, § 6º, Lei n. 12.651, de 2012). Não obstante a previsão legal, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidades propostas contra o Código Florestal – ADI 4902 ADI 4903 ADI 4937, acrescentou o requisito da identidade ecológica para as compensações ambientais. O julgamento das ações diretas de inconstitucionalidades não foi concluído ainda pelo Supremo Tribunal Federal, pois está pendente o julgamento presencial dos embargos de declaração.
Segundo o voto do Relator Ministro Luiz Fux, nos embargos de declaração, “afigura-se razoável o esclarecimento de que o requisito da identidade ecológica para a análise de equivalência das áreas considera critérios mais específicos, a exemplo de elementos abióticos, como solo e umidade; biodiversidade; fitofisionomia; estágio sucessional; ocorrência de espécies invasoras; indicadores de degradação ambiental, e o critério geográfico, segundo o qual as áreas devem estar localizadas na mesma microbacia hidrográfica; e, na impossibilidade de compensação dentro da mesma microbacia hidrográfica, devem estar o mais próximo possível, na mesma bacia hidrográfica e no mesmo Estado”.
Pela análise da definição do conceito de identidade ecológica é possível verificar um aumento significativo das características para a realização da compensação ambiental da área de reserva legal: mesmo ecossistema, dentro da mesma microbacia hidrográfica, se possível, ou bacia hidrográfica. Diante disso, poderá haver uma diminuição na utilização da alternativa legal de compensação ambiental do passivo da área de reserva legal como instrumento ambiental e econômico de regularização ambiental e um desestímulo da manutenção das áreas de vegetação nativa excedente.
Ademais, como bem pontuou o Observatório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas, a adoção do requisito da identidade ecológica para compensação ambiental poderia acarretar aumento na pressão por desmatamento e incerteza jurídica sobre as compensações ambientais já realizadas no requisito da equivalência de bioma.
Recentemente o CAR ficou fora do ar e ele tem assumido cada vez mais uma função central no ordenamento territorial brasileiro. Quais são as suas expectativas em relação a um protagonismo do CAR enquanto instrumento auto declaratório na regularização fundiária no Brasil?
O CAR é o principal instrumento da nova dinâmica de regularização ambiental de imóveis rurais imposta pela Lei n. 12.651, de 2012. A inscrição no CAR é condição obrigatória para iniciar a regularização ambiental do imóvel rural. Ademais, ele é requisito obrigatório para a concessão de crédito agrícola pelas instituições financeiras.
A inscrição na propriedade rural no CAR impõe que o proprietário ou possuidor rural se identifique, comprove a posse ou a propriedade e identifique o imóvel e as áreas de vegetação nativas existentes (área de preservação permanente, área de reserva legal etc.), por meio de planta e memorial descritivo, contendo a indicação das coordenadas geográficas com pelo menos um ponto de amarração do perímetro do imóvel.
Ou seja, a inscrição da propriedade no CAR acarreta uma série de elementos ao imóvel rural, além da questão ambiental, que aumentam a segurança jurídica. Dessa forma, tenho altas expectativas sobre o protagonismo do CAR como instrumento na promoção da regularização ambiental dos imóveis rurais e no planejamento ambiental e econômico.
Considerando as tendências de digitalização, sustentabilidade e interoperabilidade de dados, é possível afirmar que os mapas se transformarão, cada vez mais, em uma fonte de direito e instrumento de formação de provas? Teria exemplos desta prática?
Sim, é possível afirmar que os mapas se transformarão, cada vez mais, em uma fonte de direito e instrumento de formação de provas. Com o aumento da qualidade e da precisão dos mapas é possível delimitar com exatidão uma área que é objeto de uma discussão administrativa ou de uma discussão judicial e, dessa forma, limitar a responsabilidade ambiental. As matrículas dos imóveis rurais com a descrição georreferenciada também contribuem para uma maior segurança jurídica nas disputas judiciais, pois tem a sua área perfeitamente especializada.
Os dados e os mapas são muito utilizados na defesa de autos de infração ambiental (AIA), inquéritos civis (IC) e ações civis públicas ambientais (ACP). Ademais, o proprietário ou possuidor rural pode propor uma ação de produção antecipada de prova (art. 381 e seguintes do Código de Processo Civil) a fim de obter o prévio conhecimento dos fatos para evitar o ajuizamento de ação civil pública.
* BRUNO DRUMOND GRUPPI é Advogado (FMU) e Geógrafo (USP). Especialista em direito ambiental (COGEAE-PUC/SP), registral e notarial (EPD) e agronegócio (Insper). Coordenador do Núcleo Temático de Agronegócios, Ambiental e Imóveis Rurais da ADNOTARE, membro do Ibradim e integrante nomeado da Comissão Permanente do Meio Ambiente e de Direito Agrário da OAB/SP.
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Sustentabilidade e segurança jurídica são desafiadas pelo Código Florestal Brasileiro
Entrevista: Abimael Cereda Junior (MtB 91827/SP)
Fotografia e mini-cv: Enviados pelo entrevistado
Edição: Abimael Cereda Junior e Luiz Antonio Mano Ugeda Sanches