Smart Sampa: Podemos vigiar as cidades como um aeroporto?

Luiz Ugeda*

Até pouco tempo, a regra era que democracias proibiam o uso de sensoriamento remoto para monitoramento da população, enquanto regimes autocráticos o permitiam, estabelecendo lados claros entre privacidade e controle estatal. Em 2019, São Francisco tornou-se a primeira grande cidade a banir o reconhecimento facial por autoridades locais, reforçando a tradição democrática de limitar a vigilância governamental. Em contraste, a China consolidava, naquele momento, um sistema de monitoramento massivo, combinando inteligência artificial e câmeras de reconhecimento facial para controle social, com a instalação de milhares de novos dispositivos. Servia como propaganda o resgate de pessoas sequestradas na infância, entre outras vantagens.

Todavia, cidades como Londres tem rompido com o paradigma de que “democracias não vigiam”. Desde então, o uso dessa tecnologia tem aumentado significativamente. Entre janeiro e agosto de 2024, a polícia londrina utilizou o reconhecimento facial em 117 ocasiões, um aumento substancial em comparação com as 32 utilizações registradas entre 2020 e 2023. Durante esse período, aproximadamente 770.966 pessoas tiveram seus rostos escaneados pelo sistema.

Se por um lado a tecnologia oferece respostas rápidas e pode auxiliar na localização de pessoas desaparecidas ou na identificação de criminosos, por outro, o avanço dessas ferramentas sem regulamentação adequada pode comprometer direitos fundamentais, como a privacidade e a liberdade individual.

Reportagem do Fantástico, da semana passada, apontou que o sistema de reconhecimento facial Smart Sampa, implantado há seis meses pela Prefeitura de São Paulo, já resultou na prisão de 512 foragidos da Justiça e na detenção de mais de 1.700 pessoas em flagrante. Operado por uma equipe de 400 agentes da Guarda Civil Metropolitana, Defesa Civil, CET e Secretaria de Subprefeituras, o projeto utiliza um banco de dados integrado à Secretaria Estadual de Segurança Pública e mais de 23 mil câmeras espalhadas por pontos estratégicos da cidade. O monitoramento tem permitido identificar crimes em tempo real, incluindo furtos, invasões de propriedade e circulação de veículos roubados.

A tecnologia, no entanto, levanta preocupações quanto à privacidade e à transparência no uso das imagens. Especialistas apontam que o programa não conta com auditoria externa independente e que não há informações detalhadas sobre a governança dos dados coletados. Em resposta a essas inquietações, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 4.004/24, que propõe a criminalização do monitoramento de cidadãos por órgãos de segurança sem autorização judicial. O texto, com forte viés político e pouco técnico, prevê penalidades severas para agentes que utilizarem vigilância eletrônica sem justificativa legal. A proposta também obriga a informação ao cidadão monitorado sobre os motivos e detalhes da vigilância, garantindo um mínimo de transparência ao processo. A intenção é evitar que o reconhecimento facial seja empregado de maneira arbitrária ou sem mecanismos de fiscalização.

Mas a pergunta que fica é onde queremos chegar ao vigiar as cidades como um aeroporto. Se aeroportos são espaços de monitoramento por excelência, as cidades não deveriam seguir esse mesmo modelo sem um amplo debate sobre as implicações éticas e jurídicas. Afinal, até que ponto estamos dispostos a abrir mão da nossa privacidade em nome da segurança? O equilíbrio entre proteção e liberdade precisa ser redefinido de maneira transparente e democrática, sob risco de nos tornarmos reféns de um sistema de vigilância que, em nome da segurança, comprometa os princípios de uma sociedade livre.

  • Advogado e Geógrafo. Pós-doutor em Direito (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG) e doutor em Geografia (Universidade de Brasília, UnB). Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra, FDUC). Ocupou funções de gestão em diversas empresas, associações e órgãos públicos do setor elétrico, do aeroportuário e de concessões de rodovias. É sócio-fundador de startups de dados para setores regulados. Autor da obra “Direito Administrativo Geográfico”.

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