A Geopolítica do Macaco: e se o Brasil assumisse a agressão como estratégia?

Luiz Ugeda *

São incontáveis os casos de racismo contra brasileiros no exterior. Leila Pereira, presidente do Palmeiras, quando afirmou que o Brasil deveria deixar a Conmebol e disputar competições na Concacaf após mais um grosseiro e irremediável caso de racismo contra jogadores brasileiros pretos, talvez tenha dado a maior contribuição geopolítica ao país nos últimos anos e, de forma didática, tenha jogado luz a possibilidades de resposta.

Na imprensa esportiva latino-americana (sim, a distinção entre as denominações ‘América Latina’ e ‘Brasil’ tem-se acentuado, inclusive em instrumentos como o censo norte-americano, refletindo uma percepção crescente — inicialmente advinda do setor econômico — de que se tratam de realidades culturais e sociais distintas), o abalo foi real. Afinal, os clubes brasileiros respondem por cerca de 60% das receitas da Libertadores. Houve o jocoso caso do presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, que reagiu respondendo que “a Libertadores sem o Brasil é como Tarzan sem Chita“, ou seja, é como os civilizados sem seu macaco. A fala de Leila tocou em um ponto nevrálgico da arquitetura geopolítica do futebol no continente e que produz, mais uma vez, uma chance de o gigante sulamericano fazer algo.

O país que sustenta financeiramente a Libertadores, que venceu todas as últimas edições do torneio, revela diversos dos maiores talentos do continente e concentra as maiores audiências ainda é tratado como coadjuvante. Disputamos um torneio chamado “Libertadores” sem jamais termos tido um libertador — fomos colônia até nos tornarmos império, não república insurgente. Ainda assim, seguimos subordinados a decisões que partem de Assunção, no Paraguai, como se fôssemos parte de um enredo que não escrevemos. E se for hora de assumir o apelido que nos impõem — e virá-lo do avesso?

O conceito de soft power (poder brando, em tradução livre), formulado por Joseph Nye, ajuda a compreender como nações constroem autoridade sem recorrer à força, influenciando comportamentos por meio da cultura, dos valores e dos símbolos. O Brasil, com seu hibridismo linguístico, racial e cultural, detém uma reserva estratégica de poder simbólico raramente mobilizada com intenção geopolítica. Enquanto a Nova Zelândia inscreveu a cultura maori no centro do ritual esportivo dos All Blacks, transformando-a em gesto de afirmação e coesão nacional por atletas de todas as etnias, o Brasil continua a relegar suas marcas de origem à margem, como se o sotaque, a informalidade e a ancestralidade fossem ruídos e não potência. A Alemanha, ao vencer a Copa do Mundo de 2014 em pleno Maracanã, simulou no gramado uma dança indígena aprendida com comunidades do sul da Bahia — um gesto simbólico de incorporação da alteridade, ainda que performático. E, no entanto, por que esse gesto nunca partiu do próprio Brasil? Por que seguimos incapazes de ativar nossa própria raiz como estrutura de linguagem e de poder? Talvez esteja na hora de deixar de ser o soft power que se magoa e chora, para sermos o soft power que come — como diria Oswald de Andrade: a antropofagia como projeto de mundo.

Zygmunt Bauman nos advertiu que, em tempos líquidos, os símbolos mais duráveis são aqueles que escapam às classificações rígidas, que fluem entre fronteiras e recusam ser fixados. “Macaco”, nesse sentido, é um desses signos incômodos: pensado como ofensa, ele resiste como espelho. Não é a cor da pele que define o alvo — é o que se representa no imaginário dos que veem o Brasil como ameaça. O brasileiro incomoda porque é síntese, porque não cabe em categorias étnicas ou civilizacionais previsíveis. É por isso que o insulto ultrapassa a questão racial: o “macaco” é aquele que não obedece, que não se submete, que improvisa e salta. Nesse sentido profundo, estamos todos envolvidos nesta Geopolítica do Macaco — pretos, indígenas, brancos, judeus, árabes, japoneses, europeus, descendentes de todas as diásporas. O insulto nos une não por afinidade, mas por projeção. Ele revela que, aos olhos do outro, não somos iguais — somos ameaça. E talvez esteja na hora de devolver esse espelho ao mundo, não com vergonha, mas com método. Macaco não como submissão — mas como código geopolítico de resistência.

Assumir o “macaco” como estandarte não seria uma novidade no futebol brasileiro — seria apenas o próximo capítulo de uma longa tradição de ressignificação simbólica. O Flamengo ressignificou o “urubu” — usado para ofender seus torcedores negros — em ícone de combate e vitória. O Palmeiras transformou o “espírito de porco”, antes usado como xingamento em contexto de disputa política entre clubes, em grito de orgulho e mascote oficial. O Santos, outrora chamado pejorativamente de “peixe podre” por vir do litoral, assumiu o apelido de “Peixe” com altivez. O Atlético Mineiro adotou o “Galo” inspirado nas rinhas de bairro, associando o animal à valentia e à identidade da torcida. A Ponte Preta, por sua vez, fez da “macaca” — termo que carrega até hoje camadas racistas e misóginas — um símbolo de resistência histórica. Em todos os casos, a virada simbólica não foi passiva: foi afirmativa, provocadora, criativa. Por que não fazer o mesmo em escala nacional? Por que não vestir preto em campo diante de quem tolera o racismo?

O preto brasileiro na África é brasileiro. O índio brasileiro nos demais países latinos é brasileiro. O branco brasileiro na Europa é brasileiro. O japonês brasileiro no Japão é brasileiro (gaijin). Onde quer que estejamos, carregamos uma marca de deslocamento que nos torna imediatamente visíveis, periféricos, quase sempre exóticos. O que nos une não é a origem, mas o olhar do outro. Somos a figura que escapa, que não cabe, que desafia o centro. E é por isso que precisamos de um gesto coletivo, não como lamento, mas como afirmação estratégica. Um rito que condense nossa história fragmentada, nossas ancestralidades diversas e nossa vocação antropofágica. Se “somos todos macacos”, que protejamos nossos brasileiros afrodescendentes, que tenhamos sabedoria para celebrar nossa história com respeito, prudência e que tornemos o insulto em insígnia. Porque o mundo já nos nomeia e nos desafia; cabe a nós decidir como responder, pois somos todos brasileiros.

* Advogado e Geógrafo. Pós-doutor em Direito (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG) e doutor em Geografia (Universidade de Brasília, UnB). Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra, FDUC). Ocupou funções de gestão em diversas empresas, associações e órgãos públicos do setor elétrico, do aeroportuário e de concessões de rodovias. É fundador de startups de dados para setores regulados. Autor da obra “Direito Administrativo Geográfico”.

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