All in no georreferenciamento: a aposta arriscada do Decreto nº 12.689/2025

Luiz Ugeda*

“All in”, expressão emprestada do pôquer, significa apostar tudo — sem etapas intermediárias. É exatamente o que faz o Decreto nº 12.689/2025: ao alterar o Decreto nº 4.449/2002 e a forma de aplicação do art. 176, §§ 3º e 4º, da Lei nº 6.015/1973, ele abandona o escalonamento por área e fixa um único marco: 21 de outubro de 2029. Até essa data, a falta de georreferenciamento não bloqueia atos registrais; a partir dela, o § 2º do art. 10 veda qualquer ato sem identificação geométrica conforme o decreto. Em outras palavras, sai a esteira gradual; entra um gatilho total.

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No curto prazo (2025–2029), a consequência imediata é a descompressão da urgência registral. Proprietários que estavam pressionados a contratar serviços de georreferenciamento podem adiar custos, já que os registros seguem liberados até 2029. Esse alívio afeta diretamente o fluxo de caixa de empresas e profissionais de geotecnologia, reduzindo a demanda compulsória. Ao mesmo tempo, a pressão não desaparece totalmente: permanece a necessidade de georreferenciamento em operações de crédito rural, due diligence fundiária, servidões de infraestrutura e demandas judiciais, além da crescente exigência de conformidade ambiental. Nesse vazio, quem assume o protagonismo é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que segue obrigatório por força do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) e, portanto, se torna a principal base de espacialização ativa dos imóveis rurais no período.

Essa centralidade do CAR tem efeitos ambivalentes. De um lado, garante uma base mínima de dados geográficos para políticas públicas, acesso a crédito e mercados de exportação. De outro, expõe riscos, já que o CAR é autodeclaratório, sujeito a retificações posteriores e a inconsistências espaciais. Em termos práticos, de 2025 a 2029 o país se apoia num cadastro ambiental massificado, mas frágil, enquanto o cadastro registral georreferenciado (SIGEF/INCRA) fica em suspensão. A consequência é um deslocamento da governança fundiária: o Ministério do Meio Ambiente e o Serviço Florestal Brasileiro ganham peso na espacialização territorial, enquanto o INCRA perde protagonismo temporário. Essa inversão de papéis pode gerar conflitos institucionais, já que o CAR nunca foi concebido como cadastro dominial.

No médio prazo, o risco é de concentração de demandas em 2029. O marco único tende a provocar uma corrida por certificações no INCRA/SIGEF, sobrecarregando cartórios, empresas de topografia e infraestrutura tecnológica (GNSS, drones, RTK). Os custos transacionais podem aumentar e a qualidade técnica cair, com trabalhos apressados e retrabalho frequente. Para os registradores, a lógica binária (“vale tudo até 2029; bloqueio total depois”) reduz a margem de saneamento gradual de passivos. Para o Estado, um gargalo mal administrado pode forçar nova prorrogação, minando a credibilidade regulatória e o planejamento fundiário. E para o mercado, abre-se espaço para empresas de maior porte, com escala para absorver picos de demanda, em detrimento de estruturas menores.

A suspensão da exigência como condição de registro até 21 de outubro de 2029 cria incentivos para ações dolosas: ocupações irregulares, grilagem, desmembramentos artificiais e transmissões estratégicas antes do marco, buscando “congelar” situações jurídicas em matrículas ainda não saneadas por georreferenciamento. Embora tais práticas permaneçam ilícitas e sujeitas a controle (administrativo, civil e penal), o ambiente de “janela aberta” pode elevar o custo de fiscalização e expandir o passivo contencioso a ser enfrentado após 2029, quando a exigência se tornar impeditiva. O resultado provável é um aumento de disputas sobre sobreposições, vácuos dominiais e alienações a non domino, pressionando registros de imóveis, corregedorias e o próprio INCRA em um momento já crítico.

No longo prazo, caso o marco de 2029 seja cumprido, o efeito estrutural é positivo: o georreferenciamento passa a ser condição universal para circulação de imóveis rurais, fortalecendo o princípio da especialidade objetiva e reduzindo sobreposições, duplicidades e alienações irregulares. A vedação do § 2º funcionará como freio real a transações sem lastro geométrico, induzindo padronização técnica e saneamento registral. Isso pode elevar a segurança jurídica, atrair investimentos e valorizar ativos regularizados. O ganho, contudo, depende da capacidade institucional de processar a massa de demandas sem comprometer acurácia posicional, coerência de vértices e rastreabilidade documental. Se a transição for mal gerida, o resultado será um acervo saturado de erros e um ciclo de litígios ainda maior.

Do ponto de vista distributivo, a revogação do escalonamento altera o equilíbrio entre grandes e pequenos proprietários. Antes, os maiores eram obrigados a georreferenciar primeiro, enquanto os menores tinham até 22 anos de prazo. Agora, todos enfrentam a mesma data de 2029. A regra uniformiza, mas pode ser percebida como injusta por segmentos menos capitalizados, que perderam a dilatação original. Esse cenário favorece players de grande escala, com equipes, equipamentos e capital para lidar com a corrida final, mas também abre espaço para arranjos cooperativos em nível local ou regional, que permitam diluição de custos unitários e preservação de margens.

A interação do novo decreto com normas administrativas do Judiciário — como o Provimento CNJ nº 195/2025, que instituiu o SIG-RI e o IERI-e — cria um paradoxo: enquanto os cartórios já estão obrigados a alimentar sistemas integrados de geoinformação e saneamento de matrículas, a exigência de georreferenciamento como condição impeditiva só será acionada em 2029. Essa defasagem reforça o risco de descompasso entre cadastros: de um lado, um CAR ambiental massivo, mas vulnerável; de outro, um SIGEF registral mais preciso, todavia incompleto. O sucesso da travessia dependerá menos da letra do Decreto e mais da governança da transição: planejamento de capacidade instalada, interoperabilidade entre sistemas, qualidade técnica dos memoriais e comunicação clara com proprietários e agentes financeiros. Se esses pilares sustentarem o processo, o país pode sair de um ciclo crônico de prorrogações para um acervo fundiário mais íntegro; se falharem, trocará um problema gradual por um colapso concentrado em 2029.

* Advogado e geógrafo, é doutor em geografia com pós-doutorado em direito; fundador do portal Geocracia

ISSN 3086-0415, edição de Luiz Ugeda.

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