Brasil precisa de um “Plano Real” de dados

Luiz Ugeda*

Sempre se ouve, aqui e acolá, que os dados são o novo petróleo. Se este é o eixo central da economia, que faz com que a Nvidia afunde quase 17% com nova IA chinesa, fazendo com que os Estados Unidos perdessem o equivalente ao PIB de um petro-estado como a Arábia Saudita em dois dias, por que o negligenciamos tanto no Brasil?

Vivemos em uma era na qual dados moldam decisões econômicas, políticas e sociais. Governos, empresas e cidadãos são cada vez mais influenciados por métricas e análises que orientam desde políticas públicas até estratégias de mercado. A “dataficação”, ou seja, transformar tudo e todas as pessoas em dados, transformou a maneira como o mundo compreende fenômenos complexos, permitindo projeções mais precisas e uma gestão mais dinâmica dos recursos. No entanto, essa revolução só faz sentido quando os dados são coletados, tratados e disponibilizados de maneira confiável, seja público ou privado.

A relação de alguns países com os dados é condicionada por experiências históricas e, quando mal utilizado, podem inviabilizar nações prósperas. A Alemanha, por exemplo, carrega uma forte herança da Guerra Fria (1947-1991), período em que sua sociedade foi rigidamente monitorada. Essa experiência resultou em uma jurisprudência rigorosa sobre o sigilo estatístico, consolidada na decisão do Tribunal Constitucional Alemão de 1983, que é o grande paradigma global para a proteção de dados, que tem se mostrado excessiva e, muitas vezes, inócua. A União Europeia avançou neste entendimento e se especializou em definir restrições ao uso de dados, enfatizando mais o que não pode ser feito do que as possibilidades de aproveitamento dessa informação para o benefício coletivo. Hoje é notória a baixa capacidade europeia de inovar, bem como a existência de raros exemplos de inovação com dados no continente.

Na América Latina, dados muitas vezes assumem contornos nebulosos, uma espécie de “Realismo Mágico” que nos distancia de um retrato fiel da realidade. A controvérsia envolvendo o fim do segundo Governo de Cristina Kirchner (2011-2015) deixou de medir a percentagem de pobres na população em 2014. O argumento de que tais estatísticas poderiam gerar estigma reflete um viés que extrapola a técnica e se insere na construção de discursos políticos. Essa prática não se limita à Argentina: em diversos momentos, metodologias foram alteradas ou dados deixaram de ser divulgados para evitar desconfortos políticos, criando realidades paralelas. Trocando em miúdos: mostrar um país mágico e próspero, completamente descolado da realidade.

A falta de dados confiáveis compromete a formulação de políticas públicas e reduz a capacidade de análise dos desafios nacionais. No Brasil, essa situação se agrava diante de um Estado que gasta cada vez mais e com uma base estatística que começa a ser fortemente questionada. A Fundação IBGE, tradicionalmente referência na coleta e tratamento de informações, atravessa uma crise sem precedentes. Chegou a ser criada uma fundação paralela para fins pouco esclarecidos, suspensa nesta quarta pelo Governo Federal, na qual o sindicado e a presidência da Fundação IBGE, ambos historicamente de esquerda, se encontram em pé de guerra.

Exemplos de ineficiência na gestão de dados não faltam. O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado para mapear e regularizar propriedades rurais, enfrenta dificuldades operacionais que limitam sua aplicação prática. A base de dados do CAR não se integra adequadamente com outras fontes de informação fundiária, o que permite a sobreposição de registros e a criação de um cenário de incerteza jurídica. A falta de confiabilidade desses dados prejudica a fiscalização ambiental e enfraquece os esforços de regularização de terras.

A gestão dos dados ambientais é altamente fragmentada e a oficialidade dele está nas mãos de empresas privadas, uma vez que o exercício da soberania de dados no Brasil é praticamente inexistente. O mercado de créditos de carbono no Brasil também sofre com a desorganização das bases de dados. A ausência de registros confiáveis sobre áreas preservadas e passíveis de compensação ambiental mina a credibilidade das transações. O caos fundiário e a fragmentação das informações colocam em risco a capacidade do país de se consolidar como um ator relevante nesse mercado global, comprometendo potenciais investimentos e a monetização da preservação ambiental.

Outros setores enfrentam problemas semelhantes. A instabilidade na produção de dados de segurança pública impede análises precisas sobre a criminalidade e suas tendências. Informações sobre saúde pública frequentemente apresentam lacunas ou são divulgadas de maneira incompleta, dificultando o planejamento adequado de políticas sanitárias.

A ausência de um sistema de dados confiável compromete não apenas a governança nacional, mas também a inserção do Brasil na economia global. Países que investem na organização e transparência de suas bases de dados são mais atrativos para investimentos e acordos internacionais. A previsibilidade gerada por estatísticas bem estruturadas reduz riscos para agentes econômicos, favorecendo o desenvolvimento sustentável e a estabilidade financeira.

Um “Plano Real” de dados seria uma resposta necessária para esse cenário. Assim como a estabilização da moeda exigiu medidas concretas e disciplina fiscal, a recuperação da credibilidade nos dados oficiais e abertos do Brasil demanda ações estruturantes. A independência dos órgãos de produção de dados, a modernização das metodologias, a transformação da Fundação IBGE em órgão de Estado e a transparência na divulgação das informações precisam ser tratados como prioridades estratégicas.

A sociedade também precisa reconhecer a centralidade dos dados no debate público. O incentivo à cultura da transparência são passos fundamentais para garantir que o país tenha uma base confiável para a formulação de políticas. Sem um compromisso com a integridade estatística e em dados oficiais e abertos, a tomada de decisões continuará refém de narrativas políticas, em vez de se basear em diagnósticos sólidos da realidade.

A reconstrução da confiança nos dados abertos não será instantânea, mas é um esforço necessário. Um país que não mede sua própria realidade com rigor dificilmente conseguirá planejar seu futuro. O Brasil precisa enfrentar esse desafio com seriedade, sob o risco de continuar aprisionado em um ciclo de desinformação que compromete seu crescimento e sua estabilidade institucional.

*Advogado e Geógrafo. Pós-doutor em Direito (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG) e doutor em Geografia (Universidade de Brasília, UnB). Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra, FDUC). Ocupou funções de gestão em diversas empresas, associações e órgãos públicos do setor elétrico, do aeroportuário e de concessões de rodovias. É sócio-fundador de startups de dados para setores regulados. Autor da obra Direito Administrativo Geográfico”.

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