Luiz Ugeda
A criação da Estratégia Federal de Governo Digital, por meio do Decreto nº 12.198, de 24 de setembro de 2024, visa modernizar a administração pública brasileira ao promover o uso de tecnologias digitais para transformar a prestação de serviços e a formulação de políticas públicas. Um dos componentes centrais dessa estratégia é a Infraestrutura Nacional de Dados (IND), que será responsável por coordenar o uso estratégico de dados pelos órgãos federais.
A governança da IND será liderada pela Secretaria de Governo Digital, que terá a responsabilidade de coordenar, monitorar e apoiar a implementação da estratégia em colaboração com outros órgãos e entidades. Essa governança envolverá a definição de normas, políticas e padrões técnicos, além de fomentar a utilização de infraestruturas digitais compartilhadas. A Secretaria também atuará na supervisão dos Planos de Transformação Digital dos órgãos públicos e na oferta de tecnologias e serviços que promovam a integração e acessibilidade dos dados, assegurando que as metas da Estratégia Federal de Governo Digital sejam cumpridas de maneira eficaz.
No contexto da IND, o processo de governança poderá promover a integração de dados entre os diversos entes federativos, o que facilitará o uso eficiente dos dados no desenvolvimento de políticas públicas. Além disso, os comitês de governança digital que serão instituídos nos órgãos públicos terão a função de deliberar sobre as ações relacionadas ao uso de recursos tecnológicos, assegurando a supervisão e a governança eficiente da IND. Mas este decreto é suficiente para alcançar estes fins?
Porquê integrar a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE)?
A integração da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE), instituída pelo Decreto nº 6.666/2008, à Infraestrutura Nacional de Dados (IND) possibilitaria ao país obter um efetivo avanço estratégico para otimizar o uso de dados espaciais no setor público, contribuindo para uma gestão governamental mais eficiente e inteligente. Segundo Goodchild (2007), os dados espaciais possibilitam o planejamento e a execução de políticas públicas, especialmente em áreas que demandam alta precisão, como o planejamento urbano e a gestão de recursos naturais. A INDE, infelizmente não consolidada como uma infraestrutura fundamental para a coordenação de dados espaciais entre diferentes órgãos governamentais, pode ser potencializada ao se integrar à IND, permitindo um uso mais sinérgico e estratégico de informações em iniciativas como cidades inteligentes e a gestão ambiental sustentável. Essa integração permitirá ao governo federal alavancar a infraestrutura existente e ampliar o impacto das políticas públicas, ao mesmo tempo em que promove a interoperabilidade entre sistemas e níveis de governo.
Além de melhorar a eficiência governamental, a incorporação da INDE na IND promoveria uma governança colaborativa mais robusta e uma maior interoperabilidade de dados, como apontam Budhathoki, Bruce e Nedovic-Budic (2008). No Brasil, essa integração seria particularmente relevante em áreas como a gestão de desastres naturais, onde o uso de dados espaciais em tempo real pode otimizar a resposta governamental, melhorando o planejamento e a execução de ações de emergência. Ao integrar a INDE à Estratégia Federal de Governo Digital, o Brasil pode seguir as melhores práticas internacionais, como as adotadas pela Infraestrutura de Dados Espaciais da Europa (INSPIRE), que promove a interoperabilidade de dados espaciais entre países membros da União Europeia (Craglia & Annoni, 2007). Isso reforçaria o papel da INDE como parte central da gestão pública digital, ao mesmo tempo em que aumentaria a capacidade do governo de enfrentar desafios complexos, como urbanização desordenada, mudanças climáticas e a sustentabilidade dos recursos naturais.
Que não se repitam os erros da INDE na IND
A implementação da Infraestrutura Nacional de Dados (IND) enfrentará desafios complexos que precisam ser solucionados para evitar os erros observados na execução da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE). Um dos principais problemas da INDE foi a falta de uma política clara de reutilização e interoperabilidade de dados, o que dificultou a troca eficiente de informações entre órgãos governamentais. Como apontam Janssen, Charalabidis e Zuiderwijk (2012), a interoperabilidade garante que infraestruturas de dados funcionem de forma integrada e sejam úteis para a formulação de políticas públicas. A ausência dessa interoperabilidade tem sido sentida em sistemas governamentais como o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), que sofre quedas frequentes e demonstra a falta de uma infraestrutura tecnológica adequada para dar suporte a plataformas de dados complexas. Sem uma solução para essas questões, a IND corre o risco de replicar os fracassos da INDE, limitando o potencial dos dados públicos para gerar impactos significativos em políticas e serviços governamentais (Dawes, 2010).
Outro desafio importante é a falta de um compromisso obrigatório para que estados e municípios participem da governança de dados proposta pela IND no Decreto nº 12.198/2024. O Decreto nº 6.666/2008 cometeu este mesmo erro de facultar a adesão dos entes subnacionais, resultando em uma implementação fragmentada e ineficiente da INDE. Conforme sublinhado por Zuiderwijk, Janssen e Davis (2014), uma infraestrutura de dados eficaz exige uma política coesa, onde todos os níveis de governo estejam obrigatoriamente engajados em promover a interoperabilidade e a reutilização de dados. A criação de uma lei nacional que vincule estados e municípios à governança de dados seria um passo necessário para garantir a eficácia da IND, estabelecendo obrigações claras que assegurem a integração dos sistemas de dados em todo o território brasileiro (Janssen, 2012).
Por uma genuína gestão brasileira de dados abertos
O Brasil está pelo menos 25 anos atrasado em relação ao mundo por não legislar o tema dados abertos como um setor emergente de infraestrutura. Pouco ou nada adianta a criar por decreto, precisamos pensar em uma lei sobre o tema, somente assim teremos força legal para vincular as entidades para abrirem e interoperarem seus dados. Devemos o tratar como um setor regulado, como ocorre com o setor elétrico, de telecomunicações, de saneamento etc. A inclusão da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE) na Estratégia Federal de Governo Digital é uma oportunidade estratégica que não deve ser ignorada. A coordenação entre a IND e a INDE promoveria uma governança mais eficiente e baseada em dados, além de ampliar o impacto de políticas públicas fundamentais para o desenvolvimento sustentável e a inovação urbana. Como Longley et al. (2015) afirmam, a integração de dados digitais e espaciais pode criar uma nova era de eficiência governamental, beneficiando tanto o setor público quanto a sociedade como um todo.
Referências:
Budhathoki, N. R., Bruce, B., & Nedovic-Budic, Z. (2008). Reconceptualizing the role of the user of spatial data infrastructure. GeoJournal, 72(3), 149-160.
Craglia, M., & Annoni, A. (2007). INSPIRE: An innovative approach to the development of spatial data infrastructures in Europe. Research and Theory in Advancing Spatial Data Infrastructure Concepts, 93-105.
Dawes, S. S. (2010). Stewardship and usefulness: Policy principles for information-based transparency. Government Information Quarterly, 27(4), 377-383.
Goodchild, M. F. (2007). Citizens as sensors: the world of volunteered geography. GeoJournal, 69(4), 211-221.
Longley, P. A., Goodchild, M. F., Maguire, D. J., & Rhind, D. W. (2015). Geographic information systems and science. John Wiley & Sons.
Miller, H. J., & Goodchild, M. F. (2015). Data-driven geography. GeoJournal, 80(4), 449-461.
Rajabifard, A., & Williamson, I. P. (2016). Spatial data infrastructures: Concept, nature, and SDI hierarchy. In Developing spatial data infrastructures: From concept to reality (pp. 5-22). CRC Press.
Zuiderwijk, A., Janssen, M., & Davis, C. (2014). Innovation with open data: Essential elements of open data ecosystems. Information Polity, 19(1,2), 17-33.
Luiz Ugeda
Advogado e Geógrafo. Pós-doutor em Direito (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG) e doutor em Geografia (Universidade de Brasília, UnB). Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra, FDUC). É pesquisador do CPTEn – Centro Paulista de Estudos da Transição Energética da Unicamp. Ocupou funções de gestão em diversas empresas, associações e órgãos públicos do setor elétrico, do aeroportuário e de concessões de rodovias. É sócio-fundador de startups de dados para setores regulados, incluindo a Geodireito, a Geocracia e a JusMapp. Autor da obra “Direito Administrativo Geográfico”.