Falta de gestão de dados públicos como necropolítica ambiental brasileira

Em artigo originalmente publicado no Conjur, Luiz Ugeda* escreve sobre a forma de se gerir dados públicos ambientais no Brasil, que tem refletido uma faceta da necropolítica, em que a má administração ou a ocultação proposital de informações contribuem para a degradação ambiental, o abandono de populações vulneráveis (Le Billon, 2021) e, no limite, a morte de biomas (Mbembe, 2019). A ausência de uma política de dados transparente e integrada acaba por beneficiar atividades predatórias, perpetuando a marginalização desses grupos (Agnew, 2018).

O Cadastro Ambiental Rural exemplifica como a má gestão de dados ambientais pode atuar como ferramenta de controle e exclusão. Criado para mapear propriedades rurais e assegurar áreas de proteção, como reservas legais, o CAR deveria ser um mecanismo eficaz de monitoramento.

Entretanto, a falta de fiscalização, o uso de dados desatualizados e a sobreposição de informações permitem que atividades ilegais, como a grilagem de terras, o desmatamento e a exploração irregular de áreas protegidas, ocorram sem impedimentos (Davis, 2006). Assim, o CAR, que deveria funcionar como um aliado da preservação ambiental, muitas vezes facilita a degradação (Nixon, 2011), ou mesmo a morte dos biomas brasileiros.
Além do uso da força

A manipulação de dados ambientais, como ocorre no CAR, demonstra que a necropolítica não se limita ao uso da força, mas também à omissão ou distorção de informações (Hochstetler; Keck, 2007).

O CAR sobreposto, por exemplo, é uma prática comum na qual áreas protegidas são registradas como propriedades privadas, resultando em disputas fundiárias e exploração ilegal (Peluso; Watts, 2001).

Outras variantes, como o “CAR fantasma” e o “CAR de fachada”, permitem que áreas inexistentes ou irregulares sejam legalizadas, mascarando práticas de degradação ambiental e encorajando a impunidade (Hecht; Cockburn, 2010).

Em São Paulo, após os recentes incêndios que devastaram áreas agrícolas, a Federação da Agricultura e Pecuária (Faesp) solicitou na semana passada ao governo estadual que as propriedades já cadastradas no CAR mantivessem seu status regular, mesmo após terem sido devastadas.

Esse pedido evidencia uma prática de “CAR post mortem“, em que áreas destruídas tentam, no papel, manter uma aparência de regularidade ambiental (Tsing, 2005). Essa dinâmica reforça a ideia de que o controle dos dados e a narrativa ambiental podem ser usados como ferramentas de poder que determinam o destino de ecossistemas e populações (Nixon, 2011) e ninguém se responsabiliza pela extinção de áreas ou mesmo de biomas.
Subutilização de recursos

Além do CAR, outras ferramentas tecnológicas de geoinformação, como imagens de satélite e sensores remotos, poderiam ser o centro de um grande sistema pericial nacional como, por exemplo, a Indonésia faz com o One Map Policy (Política Pública do Mapa Único, em tradução livre) e coordenar os dados para um grande pacto nacional de gestão de dados para a proteção ambiental e o ordenamento do território. Esses sistemas possibilitam o monitoramento em tempo real do desmatamento e das queimadas e oferecem uma visão integrada do território (Tsing, 2005).

No entanto, a subutilização desses recursos, muitas vezes motivada pela falta de investimento ou por interesses políticos, que se recusam a regulamentar o artigo 21, XV, da Constituição e atribuir uma política pública estatística, cartográfica e geográfica ao país, faz com que crimes ambientais permaneçam sem resposta adequada, permitindo que os danos se perpetuem (Hecht; Cockburn, 2010).

A falta de gestão adequada dos dados também se reflete em outros aspectos da política ambiental. O Brasil enfrenta desafios relacionados à ocupação de terrenos de alto risco, como encostas e áreas suscetíveis a deslizamentos (Davis, 2006).

A ausência de uma regulação técnica efetiva do crescimento urbano e a inadequação dos programas habitacionais resultam em tragédias frequentes, como deslizamentos e inundações, que afetam principalmente as populações mais pobres (Agnew, 2018). O mapeamento dessas áreas de risco, previsto pela legislação, muitas vezes não é realizado ou é feito de forma ineficaz, contribuindo para a perpetuação de desastres (Hochstetler; Keck, 2007).

A necropolítica ambiental no Brasil se manifesta não apenas na destruição dos ecossistemas, mas também na forma como a gestão de dados ambientais é negligenciada ou manipulada, como ocorre com a ausência de realização das cartas geotécnicas pelos municípios, conforme previsto na Lei nº 12.608/2012, que são instrumentos fundamentais para a gestão territorial e a prevenção de desastres em áreas suscetíveis a deslizamentos, inundações e outros processos geológicos ou hidrológicos correlatos.

A ausência de transparência e de uma gestão integrada permite que áreas protegidas sejam exploradas e que comunidades sejam expulsas de seus territórios (Peluso; Watts, 2001). O uso de dados incorretos ou desatualizados contribui para um ciclo de violência ambiental e social, onde os mais vulneráveis sofrem as consequências mais graves (Le Billon, 2021).

A criação de um sistema robusto de gestão de dados ambientais, que integre diferentes fontes de informação e seja transparente, poderia mitigar muitos desses problemas (Hecht; Cockburn, 2010).

Ferramentas como o CAR, quando corretamente administradas, poderiam fornecer uma visão holística do território brasileiro, facilitando a identificação de áreas de risco e a preservação de ecossistemas (Tsing, 2005). Além disso, o uso de tecnologias de geoinformação, como imagens de satélite e drones, poderia garantir uma fiscalização mais eficaz e em tempo real, permitindo que ações rápidas fossem tomadas em casos de degradação ambiental.
Ausência de coordenação

De nada adianta o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) ter um sistema, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) outro, e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) cada um com seus próprios sistemas, se não há uma entidade central como maestrina na coordenação desta “orquestra algorítmica”. A mais próxima tentativa de unificar esses dados foi o Decreto 6.666/2008, que instituiu a Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE).

No entanto, a INDE não possui personalidade jurídica, sua adesão não tem caráter obrigatório, além de não estar conectado a nenhuma legislação cogente, visto que o artigo 21, inciso XV, da Constituição ainda não foi regulamentado.
Conclusão

A contínua devastação dos biomas brasileiros, seja de forma intencional ou negligente, expõe um dolo da classe política, que se recusa a implementar um sistema de monitoramento ambiental tão rigoroso quanto o utilizado para rastrear movimentações bancárias. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o compartilhamento de dados bancários com as autoridades fiscais é permitido, o que levanta a questão de por que o mesmo rigor não é aplicado ao monitoramento e rastreabilidade de nossos biomas.

É imperativo que as entidades públicas organizem e coordenem o compartilhamento de dados ambientais no país. Já passou da hora de instituirmos uma política integrada de dados que possa evitar a perpetuação desta necropolítica ambiental, garantindo a preservação efetiva de nossos recursos naturais e a proteção das populações mais vulneráveis.

Referências:

AGNEW, John. Globalization and Sovereignty: Beyond the Territorial Trap. Rowman; Littlefield, 2018. ISBN: 978-1-7866-0501-0.

DAVIS, Mike. Planet of Slums. Verso Books, 2006. ISBN: 978-1-8446-7027-3.

HECHT, Susanna; COCKBURN, Alexander. The Fate of the Forest: Developers, Destroyers, and Defenders of the Amazon. University of Chicago Press, 2010. ISBN: 978-0-226-32294-0.

HOCHSTETLER, Kathryn; KECK, Margaret E. Greening Brazil: Environmental Activism in State and Society. Duke University Press, 2007. ISBN: 978-0-8223-4074-0.

LE BILLON, Philippe. Environmental conflict. In: HARRIS, Paul (ed.). The Routledge Handbook of Environmental Politics. Routledge, 2021. p. 202-220.

MBEMBE, Achille. Necropolitics. Duke University Press, 2019. ISBN: 978-1-4780-0837-1.

NIXON, Rob. Slow Violence and the Environmentalism of the Poor. Harvard University Press, 2011. ISBN: 978-0-674-06290-9.

PELUSO, Nancy Lee; WATTS, Michael. Violent Environments. Cornell University Press, 2001. ISBN: 978-0-8014-8782-5.

TSING, Anna. Friction: An Ethnography of Global Connection. Princeton University Press, 2005. ISBN: 978-0-691-12059-6.

*Luiz Ugeda é advogado, geógrafo, pós-doutor em Direito (UFMG), doutor em Geografia (UnB), doutorando em Direito (Universidade de Coimbra), pesquisador do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética da Unicamp, sócio-fundador de startups de dados para setores regulados, incluindo a Geodireito, a Geocracia e a JusMapp e autor da obra Direito Administrativo Geográfico.

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