Editorial
A Fundação IBGE lançou nesta quarta-feira (7) o primeiro mapa-múndi oficial com o Sul no topo, posicionando o Brasil no centro da representação global. É a primeira vez que um país no mundo adota formalmente essa inversão como padrão cartográfico oficial, num gesto que busca simbolizar o protagonismo do Sul Global e marca uma ruptura inédita com a convenção norteada tradicional.
É fato: não existem mapas “de ponta-cabeça”. A cartografia é, antes de tudo, uma convenção técnica que estabelece sistemas de referência geodésica reconhecidos internacionalmente, definindo polos, coordenadas e projeções com base em critérios científicos — não em narrativas culturais ou modismos políticos. A posição do Norte no topo dos mapas não é um dogma ideológico, mas uma padronização consolidada para assegurar interoperabilidade e segurança em aplicações críticas, que vão da navegação aérea à exploração espacial. O problema não está em desafiar essa convenção de forma simbólica — algo até válido em contextos pedagógicos ou artísticos —, mas sim em alterar a oficialidade do dado de forma unilateral e sem qualquer estudo prévio de impacto técnico. Quando um órgão de Estado inverte a orientação de sua cartografia oficial sem respaldo normativo robusto e sem articulação internacional, abre um precedente perigoso, capaz de afetar desde sistemas de transporte e telecomunicações até a credibilidade institucional do país em fóruns multilaterais.
Para ilustrar: embora a Austrália tenha divulgado mapas invertidos em contextos educacionais e culturais — como o famoso “Mapa Corretivo de McArthur”, de 1979 —, jamais oficializou essa inversão em suas cartografias institucionais. A cartografia oficial australiana segue rigorosamente os padrões internacionais definidos por organismos como a Organização Internacional de Normalização (ISO) e a Organização Hidrográfica Internacional (OHI), que padronizam a orientação norteada para garantir total compatibilidade em sistemas de navegação, telecomunicações e defesa. Alterar isso de maneira unilateral e com uma canetada seria, além de tecnicamente imprudente, uma ameaça direta à integração global e à segurança operacional.
Mas no Brasil, manda o Brasil. Então vamos imaginar o que aconteceria se outras instituições nacionais resolvessem adotar a mesma “lógica oficial” da Fundação IBGE.
Se a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) seguisse o exemplo, teríamos mapas de cobertura de redes móveis e roteamentos satelitais apresentados com o Sul no topo, exigindo reconfigurações pesadas e gerando um pesadelo de incompatibilidade com os padrões internacionais da União Internacional de Telecomunicações (UIT). A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), ao planejar redes elétricas com mapas invertidos, arriscaria a segurança energética do país — bastaria uma crise para a bagunça geográfica virar risco real de apagão. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), operando com cartas ambientais ao avesso, transformaria o combate a desastres em um verdadeiro jogo de azar: imagine brigadas tentando conter incêndios florestais enquanto tentam decifrar se a fumaça está a Norte ou a Sul. A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)? Um capítulo à parte. Inverter cartas aeronáuticas seria uma receita pronta para tragédia: torres de controle, pilotos e sistemas automatizados — todos treinados por décadas em mapas norteados — teriam sua bússola mental suleada, tornando o espaço aéreo brasileiro um campo minado de erro fatal.
E o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)? Se hoje já convivemos com o drama dos 1,4 milhão de km² de sobreposição fundiária usando mapas convencionais, imagine esse caos multiplicado. Matrículas cartoriais suleadas, registros fundiários embaralhados, e o Cadastro Ambiental Rural (CAR) — que já enfrenta dificuldades para cruzar dados com precisão — travando geral, confundindo floresta com fazenda e glebas urbanas com áreas de proteção permanente. Comprar, vender, hipotecar terras? Só depois de os cartórios sulearem tudo. Até lá, bem-vindo ao país onde nem a bússola sabe mais o caminho.
E a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)? A demarcação de terras indígenas, que já enfrenta resistência e entraves burocráticos incríveis, passaria a lidar com insegurança jurídica e territorial. Essa inversão ganha ares de crueldade quando aplicada a povos transfronteiriços, como os Yanomami, cuja terra indígena, no Brasil, se localiza no Hemisfério Norte, basicamente em Roraima. Imagine: esse povo terá que aprender a ler e interpretar um mapa suleado para se localizar no Brasil, mas, ao atravessar a fronteira para sua porção venezuelana, precisará retornar à lógica dos mapas norteados. Um malabarismo geográfico que não apenas desafia a coerência técnica, mas também agrava a fragmentação da proteção territorial, colocando em xeque a efetividade dos direitos indígenas garantidos constitucionalmente.
Em todos esses casos, a adoção unilateral de uma nova orientação oficial — sem qualquer estudo técnico consistente — desorganizaria padrões sedimentados que sustentam a governança territorial, energética, ambiental e tecnológica do país. O nacionalismo estético vira, rapidamente, um brutal risco institucional. A afirmação da soberania pelo suleamento compromete a própria soberania que deseja defender com uma canetada.
O problema não está em virar o mapa, mas em virar as costas para a responsabilidade técnica. Nesta gestão a Fundação IBGE segue sendo tratada como um laboratório acadêmico por sua atual direção, desconectada da realidade concreta que sustenta o país — aquela onde dados cartográficos não são apenas ilustrações, mas infraestrutura crítica. Até agora, silêncio absoluto de entidades como o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), os Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia (Creas) e outros órgãos que deveriam zelar pela integridade técnica das bases cartográficas nacionais — as mesmas que garantem que uma ponte não caia, que um avião pouse no lugar certo e que um título de terra valha algo mais do que papel. Aparentemente, enquanto o Brasil testa os limites do exotismo cartográfico, como diria a piada, a NASA vem — não para aprender, mas para descobrir como um país consegue perder o Norte sem assinar sequer um mísero decreto.