Sem georreferenciamento até 2029: especialistas veem retrocesso e risco de caos fundiário

O governo federal publicou, em 22 de outubro, o Decreto nº 12.689/2025, que altera o Decreto nº 4.449/2002 e muda a forma de aplicação do art. 176 da Lei nº 6.015/1973. A norma estabelece um marco único em 21 de outubro de 2029 para que todos os imóveis rurais tenham georreferenciamento obrigatório. Até lá, os registros seguem liberados mesmo sem identificação geométrica. A decisão, que afeta proprietários rurais, cartórios e o mercado de geotecnologia em todo o país, foi justificada como forma de “não prejudicar” pequenos proprietários. Mas, para especialistas, o efeito prático é o contrário: um retrocesso que amplia a insegurança jurídica e reabre espaço para grilagem.

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Para a pesquisadora e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Suzana Santos, a medida contraria avanços recentes no combate às irregularidades fundiárias. “É um retrocesso institucional, econômico e jurídico, que favorece a grilagem de terras, amplia a insegurança jurídica e mina a capacidade do Estado em promover a gestão territorial”, afirma. Ela lembra que o georreferenciamento e a certificação junto ao Incra nasceram como resposta à CPI da Grilagem de Terras na Amazônia, e suspender sua exigência significa “querer permanecer no caos fundiário”.

O engenheiro agrimensor Regis Bueno também classifica o decreto como um atraso. Ele recorda que o tema vinha sendo tratado em projetos de lei no Congresso, mas a decisão do Executivo surpreendeu. “As sucessivas protelações num tema tão importante são preocupantes, pois fazem persistir uma condição atrasada e perversa que onera toda a sociedade”, avalia. Bueno alerta ainda que, sem exigência, tende a ressurgir a prática de “pseudo medições” de imóveis por métodos expeditos, comuns antes da Lei do Georreferenciamento, agravando a desordem fundiária.

Do ponto de vista operacional, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) não é visto como substituto capaz de garantir a integridade territorial até 2029. Santos ressalta que o CAR é “autodeclaratório, sem controle geoespacial” e com graves problemas de sobreposição a terras indígenas, unidades de conservação e áreas embargadas. Para os especialistas, apoiar-se apenas nesse sistema equivale a “certificar a grilagem de terra e usurpação de direitos”.

No Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a percepção também é de perda. A presidente do Comitê Nacional de Certificação e chefe da Divisão de Governança de Terras da superintendência do Incra no Espírito Santo (Incra/ES), Quêidimar Guzzo, lembra que a certificação pelo Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) vinha se aperfeiçoando ao longo dos anos e que a autarquia acumulou um know-how que nenhuma outra entidade possui. “Quem quiser ter segurança no seu imóvel vai continuar buscando a certificação, principalmente porque já vai ter que fazer o georreferenciamento por conta das exigências do cartório, frente ao Provimento nº 195 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”, afirma. Ela critica ainda a justificativa oficial: “Alegaram que a suspensão era para ‘não prejudicar’ pequenos proprietários, mas suspenderam para todos. Para mim, é uma confirmação de que a medida beneficia grandes grileiros”.

Antes mesmo do decreto, os pesquisadores já vinham alinhando e sintetizando essas posições em uma Nota Técnica (versão de 14/10/2025), que recomenda rejeitar as propostas de prorrogação constantes do PL 1.294/2025, PL 1.664/2025 e do art. 3º do PL 4.497/2024, sustentando que a certificação no SIGEF/Incra é o instrumento mais eficaz para coibir fraudes, sobreposições e grilagem; o documento é assinado por Suzana Santos, Régis Bueno, Quêidimar Guzzo e coautores.

No consenso dos entrevistados, o decreto abre uma “janela” de quatro anos que favorece ocupações irregulares e transmissões fraudulentas, além de desorganizar o mercado de agrimensura e sobrecarregar cartórios e o Incra em 2029, quando a exigência voltar a ser impeditiva. O risco, afirmam, é transformar um problema gradual em um colapso concentrado. “O georreferenciamento é o dado primário, capital à segurança jurídica e à gestão territorial eficiente”, resume Bueno.

ISSN 3086-0415, edição de Luiz Ugeda.

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