Luiz Ugeda*
Faz tempo que é conhecido que a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Fundação IBGE) ignora o que é Geografia, aquela expressão que (ainda) consta em seu nome e que está prevista constitucionalmente no art. 21, XV. Mas a semana passada foi pródiga em escancarar exemplos de como esta negligência afeta todo o Brasil.
A Fundação IBGE fez um grande evento sobre o que se denominou “Soberania Nacional em Geociências, Estatísticas e Dados: riscos e oportunidades do Brasil na Era Digital” que contou com a participação de 600 técnicos e três mil inscritos, majoritariamente técnicos do IBGE, de demais órgãos públicos e acadêmicos para tratar da criação da soberania digital brasileira e da consolidação do Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados (SINGED).
Como resultado, houve a divulgação de uma “Carta do Brasil na Era Digital” com 9 itens em que mencionam a palavra “estatística” 11 vezes e a palavra “geografia” apenas uma: quando descreve o nome da Fundação IBGE por extenso. O prefixo “Geo” aparece outras 6 vezes, mencionando conceitos que a carta dá a entender que seriam similares, próximos ou mesmo que tanto faz, pois no fundo sugerem que é “tudo Geo”, derivando em três eixos distintos: geoinformacional, geoespacial e geociências. Esta última expressão é a queridinha da Fundação IBGE, mesmo que ela não tenha competência jurídica para tanto, uma vez que, p. ex., geologia, enquanto uma geociência, ser de competência privativa da Agência Nacional de Mineração (ANM).
É possível afirmar que a inanição da Fundação IBGE em temas geográficos, existente desde o Decreto-Lei n. 161, de 1967, momento em que a Geografia deixa de ser uma política pública no país, na prática já inviabilizou a profissão de geógrafo. Estima-se que há mais municípios no Brasil do que geógrafas e geógrafos inscritos com CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia). Sim, profissionalmente ainda tratamos a Geografia como um ramo da Engenharia. Se, por exemplo, há quase 1,4 milhões de advogados no Brasil, são talvez pouco mais de 5 mil geógrafos inscritos. Como a Fundação IBGE não cumpre com seu dever de trazer parâmetros para a Geografia da mesma forma que faz com a Estatística, não consegue propor seu objeto de estudo e a Geografia vira um dado posto, um “salve-se-quem-puder” de profissionais que buscam trabalhar onde conseguem se encaixar sem a moldura do estado para fornecer seus parâmetros em termos atuais e práticos.
Enquanto a Fundação IBGE presta desserviços a Geografia brasileira, a chamando de nomes dos mais variados e fomentando trabalhos como o Mapa-múndi de Pochmann, aquele que coloca a divisa entre Roraima e Amazonas no centro do mundo e separa Taiwan da China nas bordas do planeta para levantar a estima brasileira, a Geografia de Estado do país caminha com pernas próprias e fora da Fundação IBGE.
Enquanto a Capela Ecumênica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro tentava ficar lotada com o evento da Fundação IBGE, a Embrapa e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) divulgavam em Brasília os resultados geoinformacionais do TerraClass durante evento com a presença dos ministros da Agricultura e Pecuária (Mapa) e de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Por sua vez, no mesmo momento o Presidente Lula sancionava a Lei que instituiu a Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana (Lei n. 14.935, de 2024), dando legalmente um tratamento geográfico para o que é periurbano sem que a Proposta Metodológica para Classificação dos Espaços do Rural, do Urbano e da Natureza no Brasil de 2023 da Fundação IBGE tenha o definido.
São dois exemplos que mostram que a Fundação IBGE está se propondo a fazer coisas para as quais não foi legalmente chamada e se nega sistematicamente a cumprir aquilo que a Constituição brasileira lhe atribuiu. Um flagrante desvio de finalidade. De qualquer forma, fica aqui nossa singela contribuição para este debate, como diria Milton Santos, rico em percepções mas de frágil organicidade: Criem o SINGED com base em um copia-e-cola da Lei do Sistema Nacional de Informação Estatística e Geográfica do México. Traduzam, compatibilizem e executem. Lá estão todos os princípios, enunciados e estrutura de que precisamos. Lá não há vergonha em dizer e usar a verdadeira “Geografia” enquanto política pública, há uma efetiva governança de dados e a sabedoria (ou humildade) de saber que “soberania de dados” é algo inexequível nos dias atuais até para os Estados Unidos.
O problema é que, para realizar esta transformação, a Fundação IBGE não pode ser uma mera fundação. O IBGE, que existiu entre 1938 e 1967 e que pouco ou nada tem a ver para além do nome com a Fundação IBGE criada em 1967, precisa ter um chamamento existencial sobre a sua natureza jurídica. Indo direto ao ponto: Pochmann, fundação não cuida de soberania de dados de nada. Olhe para iniciativas sérias e recentes que a própria Fundação IBGE já fez para se reestruturar e faça analogia entre os esforços que entidades de infraestrutura fizeram para se repaginar (p. ex., DNAEE virou Aneel; DNPM virou ANM; ANPD nasceu como autoridade com regime jurídico distinto etc.). Estamos na torcida para que a Fundação IBGE possa fazer um trabalho real e com respaldo jurídico para além do marketing, do agrupamento academicista e da acomodação de interesses sindicais.
*Advogado e geógrafo, pós-doutor em Direito (UFMG) e doutor em Geografia (UnB). Autor do livro Direito Administrativo Geográfico. Fundador e CEO da Geocracia Legaltech.