Luiz Ugeda
A Associação dos Trabalhadores do IBGE (AssIbge – Sindicato Nacional), na greve anunciada para amanhã (15/10), anunciou que irá à Justiça contra a criação da fundação privada “IBGE+”, formalizada em julho deste ano, argumentando que essa nova entidade, informalmente chamada de “IBGE paralelo”, compromete a credibilidade e autonomia do IBGE ao permitir contratações pela CLT e financiamentos privados. A controvérsia sobre a criação da fundação reacende o debate sobre a natureza institucional do IBGE, que é responsável pela produção das estatísticas e dados geográficos oficiais do país, gerando dúvidas sobre se a entidade deve ser vista como um órgão de Estado ou de governo.
A Fundação IBGE, apesar de ter como atribuição constitucional exclusiva da União a produção de estatísticas e dados geográficos, conforme o artigo 21, inciso XV, da Constituição Federal, enfrenta um debate sobre sua natureza institucional, sendo vista ora como um órgão de Estado, ora como um órgão de governo. Enquanto sua função técnica a aproxima de um órgão de Estado, especialmente no campo das estatísticas, sua atuação em áreas como a cartografia e a geografia sugere um papel mais governamental, conforme decisões do STF que designam a Diretoria do Serviço Geográfico do Exército como a entidade a ser consultada em questões de demarcação territoriais de estados e municípios, relegando a Fundação IBGE a um papel secundário nestas matérias.
Admitamos que uma mesma entidade possa ser um órgão de Estado estatístico e órgão de Governo em cartografia e em geografia. Com a revolução informacional de nosso tempo, na qual o monitoramento da sociedade brasileira é online – temos mais celulares do que pessoas no Brasil – o papel do órgão estatístico deixa de ser concreto, intervindo no dia a dia das pessoas. Talvez a verdadeira estatística do país atualmente esteja na Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações, que tudo e todos monitora online. Não à toa, a famigerada MP 954/2020: Procedimentos para disponibilização de dados de empresas de telecomunicações buscou criar um regime jurídico para ceder dados da Anatel para a Fundação IBGE, sendo declarada inconstitucional pelo STF.
Os métodos de coleta de dados da Fundação IBGE, que foram referência a países em desenvolvimento por muitas décadas, são crescentemente ultrapassados por novas metodologias. Apenas para trazer exemplos de dois vizinhos, Chile e Equador já adotaram o censo online para parte da população. Internamente, diversos ministérios, órgãos de Estado (como Aneel, ANA, Ibama), fundações públicas, estados, municípios, dentre outros, tem produzido seus próprios dados para finalidades diversas.
A AssIbge, atualmente bastante pressionada, precisa atuar para que a sociedade tenha uma maior clareza destes propósitos “de Estado”. Mas há algumas contradições. A grande discussão atual, em pé de igualdade com a criação da Fundação IBGE+ (tese que, vingando, escancara que a Fundação IBGE não é órgão de Estado), é a transferência da unidade do IBGE da Avenida Chile, no centro do Rio de Janeiro, para o prédio do Serpro, no bairro do Horto. Se a Fundação IBGE fosse tratada integralmente como um órgão de Estado, esta discussão deveria estar pautada na hoje inimaginável transferência da sede e de seus funcionários para Brasília, como ocorre com as instituições que desempenham funções de Estado no Brasil.
Diferente de empresas públicas ou de economia mista, como o BNDES, Casa da Moeda e Petrobras, ou de entidades militares, como o Comando da Marinha, o Comando Militar do Leste, parte do Superior Tribunal Militar e a Escola Superior de Guerra, todas com sede no Rio de Janeiro, a Fundação IBGE não se enquadra em nenhuma dessas categorias para justificar sua permanência fora da capital. A possibilidade de uma solução que permita a manutenção de parte das operações no Rio, como ocorre com a Agência Nacional do Petróleo (ANP), poderia ser legalmente construída, mas notemos que mesmo a comparação com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que se dedica à produção de conhecimento científico também não parece apropriada, pois a Fundação IBGE não é (ou melhor, não deveria ser) uma entidade de pesquisa, mas sim o órgão de Estado que regula o sistema estatístico, cartográfico e geográfico do Brasil.
Recentemente, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 27, de 2021, vai ao encontro deste objetivo, ao propor um reconhecimento formal das entidades responsáveis pela produção de estatísticas, avaliações educacionais e políticas públicas como instituições permanentes de Estado. Essa PEC, apoiada por senadores de diferentes regiões e partidos, do PL ao PT, também estabelece ritos mais rígidos para a indicação de seus dirigentes, o que reforçaria a autonomia dessas entidades frente às mudanças políticas. Os deputados federais deveriam avançar com esta pauta urgentemente.
Se o Brasil quer discutir seriamente de qual maneira gerir seus dados abertos, como sugere a criação da recente Estratégia Federal de Governo Digital, por meio do Decreto nº 12.198, de 24 de setembro de 2024, que visa modernizar a administração pública brasileira ao promover o uso de tecnologias digitais para transformar a prestação de serviços e a formulação de políticas públicas, com base em uma pretensa Infraestrutura Nacional de Dados (IND), a experiência internacional sugere que é impossível de a fazer sem discutir, com seriedade e profundidade, o papel do órgão de Estado do sistema estatístico, cartográfico e geográfico. Já que a atual presidência da Fundação IBGE não pretende a fortalecer como órgão de Estado, mas a perpetuar como órgão de Governo com um viés político claro e uma fundação paralela e obtusa, que ao menos esta pauta possa verdadeiramente entrar no radar da AssIbge e do Congresso Nacional.
Luiz Ugeda
Advogado e Geógrafo. Pós-doutor em Direito (Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG) e doutor em Geografia (Universidade de Brasília, UnB). Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra, FDUC). É pesquisador do CPTEn – Centro Paulista de Estudos da Transição Energética da Unicamp. Ocupou funções de gestão em diversas empresas, associações e órgãos públicos do setor elétrico, do aeroportuário e de concessões de rodovias. É sócio-fundador de startups de dados para setores regulados, incluindo a Geodireito, a Geocracia e a JusMapp. Autor da obra “Direito Administrativo Geográfico”.