Insurreição estatística? TCE-MT anuncia censo próprio anual

Luiz Ugeda*

O presidente do Tribunal de Contas de Mato Grosso (TCE-MT), conselheiro Sérgio Ricardo, anunciou semana passada que a Corte vai conduzir um censo próprio para levantar dados econômicos e populacionais no estado, com atualização anual. A ideia, segundo ele, é “comparar” e “confrontar” os números oficiais da Fundação IBGE, produzindo um quadro detalhado por município — de arrecadação e emprego a saúde, educação, saneamento e potencial produtivo. O movimento nasce sob o argumento de que Mato Grosso ostenta uma economia pujante, mas carrega indicadores sociais dramáticos.

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Ao justificar a iniciativa, o conselheiro citou contrastes que, a seu ver, exigem diagnóstico mais fino: um estado com cerca de 3,8 milhões de habitantes e 1 milhão de beneficiários do Bolsa Família, “campeão” em carne, soja, milho e algodão, mas também em hanseníase e feminicídio; com 80 favelas nas duas maiores cidades (Cuiabá e Várzea Grande) e, ao mesmo tempo, a maior frota de jatinhos particulares do Brasil. A ambição manifestada do TCE-MT é cruzar a “realidade conhecida” nas auditorias com as prestações de contas municipais, orientando políticas públicas e a alocação de incentivos fiscais.

Na prática, TCEs, secretarias estaduais e universidades já produzem estudos, amostragens e painéis temáticos. O ponto sensível é quando um “censo” estadual pretende substituir ou descredenciar a referência nacional, seja em sua qualidade, seja em sua periodicidade. A jurisprudência e a doutrina convergem: cabe à União estabelecer o marco e a coerência do sistema estatístico e cartográfico do país, garantindo comparabilidade entre unidades da federação e séries históricas. O desafio, portanto, é de integração — e não de competição — entre bases (metadados, questionários, classificações, amostras, margens de erro e calendários).

Se bem desenhado, o censo do TCE-MT pode funcionar como estatística complementar: preencher vazios informacionais entre rodadas do Censo Demográfico e de pesquisas amostrais, refinar dados administrativos municipais e produzir auditorias analíticas para o controle de políticas públicas. Para isso, a iniciativa precisará aderir a padrões nacionais (classificações, geocodificação e malhas oficiais), documentar metodologias e abrir microdados anonimizados, de modo a permitir reprodutibilidade e escrutínio técnico.

Há, contudo, riscos. O primeiro é a incomparabilidade: mudanças de conceito, unidade territorial e instrumento de coleta podem gerar números não alinháveis com as séries da Fundação IBGE, prejudicando o planejamento e a avaliação de políticas. O segundo é a fragmentação institucional, com multiplicação de “verdades estatísticas” concorrentes, onde o dado oficial da União seria um, mas para o estado, seria outro. Eis o que pode vir pela frente, com exemplos concretos:

  • Redistribuição de dinheiro público sob disputa. Transferências constitucionais e voluntárias dependem de números comparáveis. Se o Mato Grosso divulgar populações ou indicadores “não-IBGE” e prefeitos passarem a usá-los, surgem brigas sobre FPM (Fundo de Participação dos Municípios), FPE (Fundo de Participação dos Estados), Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), SUS (Sistema Único de Saúde) e pisos mínimos de saneamento previstos em normas federais. Ex.: um município que “ganha” 15% de população no censo paralelo pode reivindicar cota maior do FPM; o vizinho, que segue a série da Fundação IBGE, contesta. Resultado: judicialização em cascata e execuções orçamentárias travadas.
  • Políticas públicas desalinhadas. Metas nacionais (vacinação, hanseníase, alfabetização, esgoto) são calibradas por séries nacionais. Se o estado adotar outra base, a régua muda. Ex.: ao estimar mais famílias em extrema pobreza que o CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais, base oficial do governo federal) e a Fundação IBGE apontam, o estado pode programar merenda, equipes de saúde e repasses próprios em patamares que o Ministério não reconhece — e os insumos não chegam porque a “demanda” não casa com o sistema federal.
  • Colisão regulatória com a Constituição. O art. 21, XV, e o art. 22, XVIII, da CF (Constituição Federal) atribuem à União organizar os serviços oficiais de estatística e legislar sobre os sistemas nacionais. Um “censo estadual” pode existir como estatística complementar; o conflito nasce quando tenta substituir a referência nacional. Desfecho provável? União e Fundação IBGE exigindo: (i) uso de malhas e códigos oficiais (p.ex., códigos de municípios da Fundação IBGE); (ii) documentação metodológica; (iii) rótulo explícito de “estatística estadual”. Sem isso, cresce o risco de o tema bater ao STF (Supremo Tribunal Federal).
  • Perda de comparabilidade e invisibilidade nacional. Séries paralelas quebram a linha do tempo. Ex.: 2026 passa a ter dois números de população para o mesmo município. A consequência é direta: pesquisadores, bancos de desenvolvimento e fundos internacionais evitam dados sem metadados auditáveis, e boas propostas de MT (saúde indígena, combate à hanseníase, saneamento em assentamentos) podem perder prioridade por falta de “dados reconhecidos”.
  • Incentivos fiscais e planejamento territorial enviesados. Se o “mapa socioeconômico” estadual divergir da Fundação IBGE, programas de incentivo (indústria, logística, bioeconomia) podem ser redirecionados para onde o censo paralelo indica “maior carência”, ainda que o indicador nacional mostre o oposto. Ex.: um município classificado internamente como “alto desemprego” recebe fábrica e isenção; depois se descobre que a taxa real era menor e que o gargalo estava em transporte e creche. Gasta-se mais e resolve-se menos.
  • Reputação, risco jurídico e custo de capital. Agências de rating e investidores olham consistência estatística. Se o estado adotar métricas próprias sem reconciliação com a Fundação IBGE, cresce o “risco de informação”. Ex.: projeções de demanda de água/energia para concessões ficam contestáveis; o edital atrai menos players ou pede prêmio de risco mais alto — encarecendo PPPs (Parcerias Público-Privadas) e contratos.
  • Explosão de contencioso municipal. Câmaras e Tribunais de Contas locais podem passar a auditar prefeitos com base em dados do TCE-MT (Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso) que divergem do Siconfi (Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro, da STN/MF), do SUS (bases oficiais de informação em saúde) e do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica, do Inep/MEC). Prefeitos recorrerão dizendo que cumpriram metas “federais”, não as “paralelas”. O TCE processa por ineficiência; o prefeito judicializa por nulidade do parâmetro. Quem perde é o calendário de políticas públicas.
  • Ambiente informacional mais vulnerável. Com dois conjuntos de números, atores políticos podem escolher o que lhes convém (“estatística de estimação”). Ex.: um gestor cita “redução da pobreza” medido pelo índice estadual; outro prova “aumento” pela Fundação IBGE. A opinião pública recebe mensagens contraditórias; o debate vira torcida, não diagnóstico.

No fim, o recado do Mato Grosso é direto: há uma disputa em curso porque a confiança nos dados nacionais cai em uma vala política a olhos vistos. O TCE-MT quer medir por conta própria; a Constituição diz que a régua e a regra é nacional. Tudo indica que o país navegará num nevoeiro estatístico que distorce orçamentos, políticas e prioridades em uma realidade que desconhecemos, o início de nosso rápido decréscimo populacional.

Se a iniciativa mato-grossense servir para trazer a governança de dados para métodos compatíveis com as exigências do século 21, ótimo. Teremos melhor digitalização, padronização, interoperabilidade, calendário obrigatório de pesquisas com intervalos menores, pesquisas via internet, regulação de dados como setor de infraestrutura, auditorias independentes e abertura mais profunda de microdados. Se virar duelo de números, o contribuinte pagará várias vezes para contarmos as mesmas coisas sem uma finalidade de integração e com resultados catastróficos.

* Advogado e geógrafo, é doutor em geografia com pós-doutorado em direito; fundador do portal Geocracia.

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