Luiz Ugeda*
O programa Smart Sampa, maior sistema de videomonitoramento da América Latina, tem números impressionantes: só em 2025, foram mais de mil foragidos da Justiça presos com apoio do reconhecimento facial. Segundo a Prefeitura de São Paulo, o sistema segue rigorosamente a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD, Lei 13.709/2018), assegurando que as imagens e dados não vinculados a investigações sejam descartados. A promessa é clara: proteger a privacidade e a liberdade dos cidadãos. Mas aí vem a pergunta incômoda — e estratégica: quanto se gasta para prender um criminoso? E, mais ainda, quanto de inteligência urbana se joga fora junto com os dados não aproveitados?
O volume de informação gerado pelas 31 mil câmeras do Smart Sampa é monumental. São imagens, padrões de circulação, zonas de aglomeração, rotas de fuga, horários críticos — uma espécie de radiografia viva da cidade, atualizada em tempo real. E ainda assim, o sistema é usado quase exclusivamente para fins de segurança pública imediata. Os dados que não servem diretamente à investigação criminal são descartados. O argumento é o respeito à LGPD. Mas será que a única saída legal é apagar tudo? Ou será que falta criatividade — e vontade política — para reaproveitar esses dados de forma agregada, anonimizada e útil para a cidade?
O custo de um sistema como esse vai muito além do que aparece nos relatórios. Há recursos públicos investidos em tecnologia, servidores, energia, integração de sistemas e pessoal. É justo que todo esse investimento resulte apenas em prisões? Por que não transformar parte desses dados em insumos censitários, em mapeamentos de uso do solo, fluxos populacionais, lacunas de infraestrutura? Nenhum artigo da LGPD proíbe o uso de dados anonimizados para fins estatísticos e de interesse público. O que falta não é base legal, mas visão estratégica.
Essa limitação de escopo faz do Smart Sampa um sistema caro e míope. Ele enxerga criminosos, mas ignora o território. A prefeitura sabe onde um foragido passa, mas pouco sabe onde a ausência do Estado cria o ambiente propício ao crime. Se os dados fossem trabalhados com inteligência urbana, seria possível cruzar criminalidade com ausência de iluminação, com falhas na mobilidade, com falta de equipamentos públicos. Mas esse não é o foco. O sistema prende — mas não aprende.
A ironia é que o próprio discurso de proteção de dados, ao ser interpretado de forma restritiva, acaba justificando o desperdício de informação pública. Não se trata de defender a vigilância total, mas de perguntar: por que tantos dados são coletados se não geram conhecimento sobre a cidade? A LGPD não é obstáculo para inteligência urbana — é apenas o ponto de partida para usá-la com responsabilidade. Dados que poderiam orientar políticas públicas viram pó digital em nome de um zelo que confunde privacidade com apagamento.
Se São Paulo quer ser uma smart city de verdade, precisa fazer mais com o que já vê. Os dados já existem. O que falta é uma política de reaproveitamento público dessas informações, com transparência, governança e visão. A União Europeia, por exemplo, já adota há anos esse princípio com a Diretiva INSPIRE, que obriga os Estados-membros a integrarem e reutilizarem dados espaciais produzidos por diferentes órgãos públicos para apoiar políticas ambientais e territoriais. Ou seja, dados coletados para um fim — como vigilância ou mobilidade — podem, e devem, ser usados para muitos outros, desde que respeitados os princípios de anonimização e interesse público. São Paulo não precisa escolher entre vigiar e planejar. Pode — e deve — fazer as duas coisas. Só assim deixará de ser um centro de captura e passará a ser, finalmente, uma cidade que aprende com o que presencia.
Advogado e geógrafo, é doutor em geografia com pós-doutorado em direito; fundador do portal Geocracia.

